Se no Tinder - aplicativo de relacionamento — as pessoas escolhem seu pretendente, no "Tinder dos Livros", iniciativa que conecta pessoas que precisam de determinadas obras com aquelas que têm condições financeiras de comprar uma, esse encontro é feito por Winnie Bueno, 31 anos, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A criadora do projeto é quem promove o match entre dois indivíduos que têm um interesse em comum, a literatura, e vontades que se complementam: dar e receber um livro. A iniciativa, criada em novembro de 2018, também tem uma peculiaridade que lhe confere um caráter ainda mais inclusivo: é voltada exclusivamente para a comunidade negra.
Pensada a partir de uma reflexão de Winnie sobre o comportamento das pessoas no Twitter, rede social na qual onde muitos se dizem atuantes na luta antirracista, a ideia nasceu com a proposta de transformar esse discurso em prática.
— Resolvi provocá-las a atuar de fato. O racismo impede que pessoas negras tenham acesso aos livros. Às vezes, fica difícil tirar R$ 50 do orçamento para comprar uma obra, porque pessoas negras têm urgências maiores. Ao doar um livro, a distância entre negros e literatura é diminuída, e a possibilidade de compartilhamento de saberes aumenta.
Um estudo divulgado em abril deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), chamado Radar Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), mostrou que brancos receberam renda R$ 767,84 maior do que a população negra em 2017. Para alavancar a ideia, a doutoranda fez uso da sua visibilidade na rede social _ na qual tem mais de 23 mil seguidores, conquistados por meio da escrita de conteúdos sobre gênero, raça e classe.
E já deixou isso claro em uma postagem na qual avisou: "Antes que perguntem por que só pessoas negras podem solicitar, porque eu estou usando a minha visibilidade e o meu tempo para fazer isso, então, vou fazer para chegar em gente preta, porque o tempo, o Twitter e a disposição são meus e utilizo em prol da negritude".
A dinâmica de funcionamento é simples: Winnie coloca um aviso na sua conta do Twitter (@winniebueno) à procura de quem tenha disponibilidade de comprar um livro. Quem está disposto a doar envia uma mensagem direta para o Twitter da doutoranda dizendo que tem disposição em comprar uma obra pra ajudar alguém. A pessoa que deseja receber um exemplar também manda uma mensagem direta para o perfil de Winnie na rede social, com os dados do livro de que precisa, endereço completo, com CEP para onde a obra deve ser enviada.
A mensagem do solicitante é printada e colocada no inbox de quem se dispôs a fazer a doação. O doador então compra o livro e fica encarregado de fazer a entrega no endereço solicitado.
— É uma sensação muito boa ganhar algo novo. E o cheiro de livro novo, particularmente, é incrível. Às vezes, acontece de a pessoa ter livros legais e em bom estado em casa para doação, mas a ideia é fazer com que livros novos cheguem a quem precisa — diz Winnie, ressaltando que recebe diversas mensagens de agradecimentos:
— As pessoas postam fotos com os livros no Instagram e no Twitter. Elas ficam emocionadas, porque tem um elemento surpresa ali. Elas mandam o pedido, mas não sabem se vão receber, porque eu não aviso nada. Apenas printo a mensagem e encaminho para o doador. Tem sido divertido ver as reações.
Gosto pelos livros incentivado pelos pais
Lisiane Pereira, 34 anos, moradora de Porto Alegre, foi contemplada duas vezes pelo Tinder dos Livros. A pedagoga recebeu, ao todo, cinco livros por meio da iniciativa. Ela soube do projeto pelo Twitter e, em dezembro passado, solicitou o envio de duas obras fundamentais para sua trajetória acadêmica como pós-graduanda em História e Cultura Afro-brasileira e Psicopedagogia da Uniasselvi.
— Precisava ter o suporte bibliográfico para desenvolver minha pesquisa, agora, no final da pós-graduação. Fiquei muito feliz por ter recebido, porque é uma pessoa que nem te conhece que está te dando um presente, que é de interesse acadêmico, mas é um presente — relata Lisiane, que ganhou ainda outros três livros de uma doadora do Rio de Janeiro.
Leitora desde os quatro anos, Lisiane utilizava a literatura como refúgio. Durante o ensino fundamental e médio, era frequentadora assídua da biblioteca da escola e amiga das bibliotecárias. O gosto pelos livros foi incentivado pelos pais. Antes dos 15 anos, já havia lido clássicos como A Mão e a Luva, de Machado de Assis, e Incidente em Antares, de Erico Verrisimo.
— Meu pai dizia que os livros fazem com que a gente seja um devorador de mundos. Mas, além disso, acredito que a leitura me coloca em um lugar seguro, de acolhimento — avalia.
Izabel Belloc, 49 anos, funcionária pública e moradora da Capital, presenteou Lisiane com duas obras. Diferentemente da estudante que precisava ir até as bibliotecas para ler, ela conta que cresceu rodeada por livros.
— Minha família sempre teve condições de comprar livros. Eu não frequentava a biblioteca do meu colégio porque tinha obras em casa. Ou seja, minha experiência, como branca, é diferente da vivência da Lisiane, que é negra. E, se a gente não estiver atenta às problemáticas raciais, vai continuar reproduzindo e perpetuando desigualdades — observa Izabel, que ainda ajudou outras quatro pessoas pelo Tinder dos livros.
Mais de 500 livros doados em oito meses
Desde que começou a movimentar o envio de obras pelo Brasil, Winnie conseguiu promover a doação de mais de 500 livros. A cantora Maria Rita, o rapper Emicida e o gaúcho Thedy Corrêa, da banda Nenhum de Nós, estão entre os doadores do projeto. Além de fazer a ponte entre as partes interessadas, a doutoranda está coletando obras para a biblioteca comunitária do Quilombo Lemos, localizado no bairro Menino Deus, em Porto Alegre.
Para tentar acelerar a aproximação entre requerentes e doadores e aliviar a agenda, um aplicativo está sendo desenhado. Porém, ela acredita que o grande trunfo da ideia esteja justamente na conexão direta entre pessoas:
— Essa ideia é simples, prática e gera conexão entre as pessoas. E é incrível perceber que um objeto simples, como um livro, torna-se um espaço de acolhimento, um lugar onde se torna possível para as pessoas negras rearticularem as próprias perspectivas sobre a violência sofrida. A escrita inscreve sua própria narrativa como um contraponto e possibilidade de autodefinição dessa população que é historicamente desumanizada — sentencia.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/