Little Rock, Arkansas – Estados Unidos, 16 de setembro de 1957.
Nove estudantes negros conseguiram, nas Cortes Federais, o direito de estudar no Ginásio Central de Little Rock, pequena cidade do Arkansas, onde as escolas eram até então segregadas racialmente.
No primeiro dia de aula, além de ouvirem a todos os insultos e ameaças feitas pelos estudantes e pela população branca à porta da escola, os nove alunos foram forçados a retornar a suas casas por ordem da Guarda Nacional do estado, convocada pelo governador Orval Faubus a fim de impedir o ingresso deles nas dependências escolares, em oposição à decisão da Justiça Federal.
O então presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, dissolveu a Guarda Nacional do Arkansas e enviou tropas de paraquedistas do Exército a fim de garantir e proteger a entrada e a permanência dos nove alunos negros no Ginásio Central de Little Rock, cumprindo assim a decisão das Cortes Federais.
O racismo no sul dos Estados Unidos estava de tal maneira arraigado que, quando o ano letivo terminou, os funcionários do sistema público do ensino de Little Rock preferiram fechar a escola – no que foram seguidos por outras escolas do estado e do Sul do país – a permitir o cumprimento da lei que determinava integração racial.
Uma das estudantes – Elizabeth Eckford, que tinha 15 anos à época, disse: “Tentei ver algum rosto amigável em meio àquela gente. Fixei o olhar numa velha senhora, desviei o olhar por um instante, mas quando olhei para ela novamente, ela cuspiu em meu rosto”.
Oxford, Mississipi – Estados Unidos, 20 de setembro de 1962
No início do ano letivo o estudante James Meredith, após ter ganho a causa que pleiteou nas Cortes Federais pelo direito de ingressar na Universidade do Mississipi, a mais racialmente conservadora daquele país, teve sua tentativa de ingressar naquele campus impedida por duas vezes.
Seu ingresso na faculdade foi obstruída por interferência pessoal do próprio governador do estado do Mississipi – Ross Barnett – que declarou: “Nenhuma escola do Mississipi será integrada enquanto eu governar esse estado”.
Após a apelação de Meredith à Corte Federal, esta arbitrou uma multa diária de U$ 10 mil por dia em que ele fosse impedido de entrar na faculdade.
Em 1966 foi um dos líderes da “Marcha Contra o Medo”, que partiu da cidade de Memphis, no Tennessee e rumou até Jackson, no Mississipi.
A violência da intolerância mostraria sua face mais terrível: James foi baleado por um desconhecido durante a marcha.
Mas a violência jamais poderia deter um idealista, e não o deteve: em 1997, 35 anos depois de ser agredido e humilhado, James Meredith voltou à mesma universidade, mas dessa vez para doar seus arquivos pessoais à instituição.
Vitória da humanidade, do bom senso e da bravura: foi aplaudido como herói.
Tuscaloosa, Alabama – Estados Unidos, 11 de junho de 1963
Vivian Malone e James Hood, dois jovens estudantes negros, preparavam-se para a batalha decisiva de suas vidas: exercer seus direitos inalienáveis de seres humanos, antes mesmo de serem cidadãos norte-americanos.
Entre Vivian, James e a entrada da universidade a qual desejavam estudar havia o governador do estado do Alabama, George C. Wallace.
Wallace havia sido eleito sob a égide de um discurso que se tornou sua profissão de fé: “segregação hoje, segregação amanhã, segregação para sempre”.
Desafiando a lei, Wallace postou-se na porta central da Universidade do Alabama onde fez mais um de seus muitos discursos demagógicos eivados de ódio.
Porém dessa feita teve de ceder: foi obrigado por Washington a suspender o bloqueio racial e permitir a inscrição e o acesso de Vivian Malone e James Hood às dependências da universidade.
Vitória da comunidade negra?
Nem tanto assim: a postura de Wallace lhe granjeou admiradores, o que o alçou a uma condição semelhante a de um “jair bolsonaro” da época, uma espécie de porta-voz do que havia de mais intolerante, odioso e discriminatório na sociedade estadunidense.
Em 1968, tentou alçar vôos mais altos do que governar um estado: palmilhar a corrida presidencial, mas já fora dos quadros dos Democratas que o abrigou até a catastrófica ação na Universidade do Alabama.
Pelo Partido Americano Independente, já no dia das eleições, conquistou a simpatia de 10 milhões de eleitores em todo o país.
O racismo, covarde, corajosamente mostrava sua musculatura e saía do armário.
Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro – Brasil, 26 de setembro de 2015
O primeiro dia da “Operação Verão”, já antecipada no Rio mesmo que ainda na Primavera, foi marcado por ônibus e praias vazias, mas com forte presença da polícia e revistas (buscas pessoais) em jovens que estavam dentro e fora de coletivos.
A senha, critério traduzido como permissão para que agentes de Segurança Pública do estado cometam abusos de autoridade, foi a procedência dos passageiros dos ônibus, a falta de dinheiro em seus bolsos para pagar a passagem, estarem descalços e/ou sem camiseta e, é claro, a cor de suas peles.
Concomitante às ações repressivas da Polícia Militar, grupos de moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro compostos por “pitboys”, lutadores de artes marciais e valentões de ocasião, organizaram-se através das redes sociais para, em ações totalmente à margem da lei, abordarem ônibus e removerem (e espancarem) os passageiros que se enquadrassem nos critérios acima descritos.
Acerca dessa prática Gilka Chaves, moradora da Zona Sul de 85 anos de idade, declara abertamente:
“Tem que fazer mesmo (abordagem nos ônibus) para eles ficarem lá.
O que eles vêm fazer aqui? Por que não vêm curtir a praia de maneira civilizada?
Se eles querem violência a gente tem que enfrentá-los com violência.
A polícia não está dando conta. Os rapazes aqui têm que tomar providências.
Já que eles vêm agredir a gente, a gente tem de agredi-los também.”
Cerceados de um dos direitos mais básicos do cidadão, o direito de ir e vir, um dos jovens passageiro de um ônibus desabafa: “Me sinto como se estivesse devendo”, logo após ser revistado, sem o menor cuidado, por um policial militar.
A sociedade que lhes negou tantos direitos agora lhes nega também o sol, o céu, o mar, a areia da praia, o sorriso do menino, o olhar da menina.
Tratados como coisas e não como pessoas, não têm valor, posto que valem o quanto carregam no bolso: nada.
A histeria da classe média carioca tenta transformar as ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro em um roteiro de filme “C”, uma espécie de Minority Report tupiniquim onde os “mocinhos” são trogloditas adestrados em academias de musculação, alimentados com preconceito, ódio e Whey Protein, tendo como coadjuvantes (ora protagonistas) policiais militares, que identificam pobres no geral e pretos em especial, vilões.
Esses são os personagens de um filme que poderia se chamar Os Pobres Vão à Praia, assunto que deu nome e foi pauta de uma reportagem especial feita pela extinta Rede Manchete no início dos anos 1990, mas que a dinâmica de mais esse ciclo de cio da cadela do fascismo trouxe novamente à tona nos dias atuais.
Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro – Brasil, 31 de maio de 2020
Um policial militar aponta um fuzil para o rosto de um manifestante desarmado.
O episódio ocorreu no bairro de Laranjeiras, em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do Estado, na Zona Sul carioca.
O manifestante participava de um protesto contra o racismo no Brasil, na mesma linha do que acontece nos últimos dias nos Estados Unidos. No Rio, os participantes pediam o fim da morte de jovens negros nas favelas – como a do menino João Pedro, de 14 anos, morto neste mês durante operação policial no Complexo do Salgueiro, no município de São Gonçalo. Ele estava dentro de casa quando foi atingido.
No que esses cinco acontecimentos, separados cronologicamente por sessenta e três anos e geograficamente por milhares de quilômetros se assemelham?
No que se diferenciam?
Nem mesmo os 63 anos que separam o que aconteceu em Little Rock, no Arkansas, dos fatos que aconteceram na Zona Sul do Rio de Janeiro conseguiram diminuir as vergonhosas labaredas, chamas que seguem ardendo, e não apenas nas ruas do Rio de Janeiro.
O ódio, combustível da discriminação de outrora, ainda hoje arde em chamas e jaz em plena combustão.
Incêndio de proporções sociais inimagináveis, a força de sua destruição segue aniquilando as frágeis pontes que os movimentos sociais construíram com muita dificuldade em nome da tolerância e da – boa – convivência pacífica.
Podemos tirar alguns ensinamentos da História, dessas histórias, e constatar que:
– Em três dos cinco casos usados para ilustrar esse artigo houve uma intervenção propositiva, acertada, a ação forte de um Estado legalista e garantidor.
– Em três dos cinco casos o Estado usou de sua força e da força da lei para defender o mais fraco contra o mais forte, defendendo o oprimido da injusta agressão praticada pelo covarde e opressor.
– Em três dos cinco casos tal intervenção foi decisiva para que o conflito fosse pacificado e, se não tanto, houvesse no mínimo um arrefecimento dos ânimos.
– Nos dois últimos casos, infelizmente no Brasil, o Estado reprime quando deve educar, sonega direitos aos jovens quando deve lhes promover acesso, torna-se cúmplice de criminosos quando não detém a ação de “justiceiros”, “valentões” e grupos organizados como milicianos.
– A violação dos direitos dos cidadãos está sendo praticada pelo próprio Estado que deveria ser o agente garantidor e mantenedor desses direitos.
A Terceira Lei da Física, tão bem arquitetada por Isaac Newton, nos orienta que “para toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade”.
Creio que para cada ação discriminatória haverá sempre uma reação igualitária de semelhante ou maior intensidade.
Esse artigo tem a intenção de fazer parte das forças que representam essa reação.
*Reedição de um artigo que escrevi originalmente em 2015.
Diógenes Júnior é escritor, técnico em Informática e acadêmico em História. Paulistano de nascimento, caiçara de coração e porto alegrense por opção, escreve para essa coluna às segundas-feiras.