Resenha Crítica do livro "Os Bestializados" de José Murilo de Carvalho
O livro trata de uma análise do comportamento da sociedade do Rio de Janeiro que começa a ter mudanças após a abolição da escravatura em 1888 e o início da proclamação da república. O crescimento populacional do Rio de Janeiro deu um salto nesse período, trazendo diversas consequências.
Nesta época a sociedade possuía um forte padrão patriarcal e tradições conservadoras. A taxa de mulheres que se dispunham (ou que eram autorizadas) a imigrar para o Rio de Janeiro era consideravelmente menor que a de homens, havendo assim, um desequilíbrio de sexos na população. Ademais, a mais notada consequência, foi o crescimento vertiginoso de ocupações mal remuneradas e mal definidas, e também da quantidade de pessoas sem ocupação alguma que só aumentava, causando o crescimento de furtos e roubos naquela localidade.
Além dos problemas com a falta de regulamentação de ocupações (resultado relacionado ao fim do período da escravidão e a recente vinda dos imigrantes que aos poucos tomavam os seus lugares em trabalhos não específicos e mal remunerados), a cada mil habitantes, cinquenta e dois morriam por problemas de saúde referentes às diversas epidemias que se alastravam principalmente no verão. Eram desde varíola, febre amarela até tuberculose e tantas outras doenças e, medidas sanitárias deveriam ser pensadas.
Oswaldo Cruz, que nesta época havia sido nomeado secretário da saúde, começa a erradicar doença por doença, começando primeiramente com a febre amarela, depois, a peste bubônica até chegar na criação de uma vacina contra a varíola, (motivo principal do que causou a Revolta da vacina), pois a população se recusava a aceitar ser vacinada devido a boatos que faria mal à saúde.
As vacinas foram sendo aplicadas na população mesmo sem o seu consentimento, os agentes sanitários, acompanhados de força policial, invadiam as casas para a aplicação Para culminar, surgiu mais um boato de que a vacina era aplicada nas partes íntimas, devendo as mulheres se despirem para os agentes aplicarem. A população, enfurecida, começou a destruir bens públicos que serviam para o uso comum. Bondes foram derrubados e queimados, destruíram a iluminação das ruas e tudo o mais que estava no caminho1, fazendo com que o Rio de Janeiro entrasse em estado de sítio.
Sobre o contexto político, o povo se mantinha indiferente, não se interessavam pela política. Segundo Aristides Lobo, a população apenas assistia bestializada sobre os acontecimentos que ocorriam e acenavam com suas cabeças como se concordando com a situação sem saber ou tomar partido com fundamento estudado de causa. Aristides ainda faz uma observação primordial que se aplica ao cenário atual no qual vivemos, pois constata que o povo apenas se volta contra o governo a fim de defender seus direitos quando estes são diretamente afetados, voltando na fase de dormência quanto aos assuntos que os afeta indiretamente e que podem fazer estragos tão grandes quanto.
O desinteresse político abriu portas a candidatos com pouca ou nenhuma experiência na área, prometendo muito nas campanhas, mas sem ter ideia de como concretizar o prometido, apenas visando a eleição. A percepção que devemos ter com tais observações aqui apresentadas, é que o governo (que é formado por pessoas) nada mais é que o reflexo da própria sociedade.
Somente podiam votar quem era alfabetizado além de possuir um indicador de renda legal, requisitos esses, que impediam a expansão do eleitorado. Somente os cidadãos considerados ativos possuíam o status civilis2. Somente 20% da população do Rio de Janeiro tinha o direito de votar e este pequeno percentual que tinha este direito, não se preocupava em exercê-lo ou até cobrar/instigar mudanças e os 80% das pessoas restantes, eram impedidas de votar, pois eram excluídas pela renda e/ou alfabetização além de excluírem as mulheres e membros de ordens religiosas, por exemplo, que independentemente de se enquadrarem nos requisitos financeiros e educacionais pré-estipulados, não eram considerados capazes.
Com a maior parte da população excluída, não tardaram as tentativas de organização de partidos políticos pró operários e trabalhadores. Com ideias bastante avançadas e que, inicialmente eram voltadas ao benefício da classe hipossuficiente, pleiteando direitos em nome dos trabalhadores, como licença saúde, férias de 15 dias, jornada de trabalho que não exceda sete horas, aposentadoria (até hoje esses direitos são parecidos ou iguais aos atuais das nossas leis trabalhistas). Depois de muitas tentativas, fora criado um partido operário sob o qual forçou o governo a mudar uma parte do código penal que proibia a greve e coligação operária (Uma incrível vitória e avanço à época).
A sociedade interessada em política dividiu-se em dois grupos, os que eram a favor do governo (fazendeiros e pessoas ricas da sociedade) e os inconformados composto pela classe operária que buscavam mudanças no cenário (uma parcela ainda pequena que conquistou timidamente o direito ao voto, sendo confundidos com arruaceiros, por causa das consequentes greves que faziam nos serviços básicos prestados, pressionando ainda mais o governo não só ao direito ao voto estendido aos demais trabalhadores, como uma melhor remuneração e postos de trabalho mais bem definidos).
Por mais que houvessem tantas inconformidades econômicas, financeiras, trabalhistas e sociais, de fato, o motivo que realmente escandalizou toda uma sociedade foi a obrigatoriedade da aplicação da vacina e a desinfecção forçada de suas casas que causaram o estopim. A sociedade do Rio conseguiu transformar seu discurso que antes era aberto a farra para uma sociedade puritana que prezava mais que tudo a honra de suas mulheres que assim como seus lares não deveriam ser violados e a resposta está basicamente ao individualismo, ao desejo de propriedade (que é exatamente como enxergavam as mulheres e os bens) e ao medo de os terem “invadidos” por um poder maior, que era o poder do governo.
Arnold Toynbee (1852 - 1883), foi um economista inglês e, seu trabalho envolvia história econômica, compromisso e desejo de melhora nas condições das classes sociais escreveu: “O maior castigo para aqueles que não se interessam por política é que serão governados pelos que se interessam.”
A fragilidade da falta do entendimento e do interesse político de uma população e a enorme abertura que se abre para quem se interessa pela política afeta a tudo e a todos. Somos o reflexo do que conquistamos ou que abrimos mão de conquistar. Desde a concepção da república, já se passaram mais de 130 anos e ainda estamos dormentes, assistindo a tudo como um povo bestializado, só acordamos e reivindicamos quando algo nos afeta diretamente e isso é escandalizador ao se comparar aos fatos do livro.
Tania Rosenblum é Bacharela em Direito pela FADERGS.
E-mail: taniarosenblum@gmail.com