ARTIGOS


O inimigo invisível reformula nossa forma de existir

Há tempos que se tenta prever a terceira guerra mundial. Quais conflitos políticos e econômicos resultariam em um novo massacre? A guerra por petróleo? A destruição dos biomas pelo agronegócio? Teorias. Especulações. O que a humanidade não esperava era que a terceira guerra não seria entre culturas ou interesses econômicos, embora estejam sempre no pano de fundo de todas as crises. Esperava menos ainda que a disputa capaz de frear a economia mundial e causar tamanha recessão - e é nesse sentido que coloco aqui a palavra “guerra” - seria com uma partícula invisível aos olhos humanos.

 

Nós, seres racionais. Seres que com o passar do tempo privilegiamos o trabalho intelectual ao manual, a lógica cartesiana e racionalista à intuição e à sensação, a individualização, a industrialização e a globalização à coletividade e à economia cooperativa, comunitária agroecológica e solidária. Nós que em grande escala questionamos tudo aquilo que não podemos enxergar, tocar ou dimensionar, nós que focamos em métricas, proporções, números, matéria. Nos deparamos com um ser microscópico o qual não enxergamos e que está, em suma, nos matando. Quando não está matando, está provocando imensa dificuldade respiratória, febres altíssimas, ou, no mínimo, nos confinando em nossas casas em uma quarentena internacional. O Coronavírus nos obriga a parar. Aqueles que já entenderam a proporção do desastre e que podem, do alto de seus privilégios, exercer a quarentena, não hesitam se isolar.

 

É uma guerra silenciosa – sem mísseis ou bombas – em que até o silêncio é coletivo. Percebemos o que criamos – a internet, as redes sociais, a comunicação mediada por telas. Também sentimos a importância insubstituível do afeto, do abraço, do carinho. É afinal o corpo físico quem nos permite experimentar o mundo de todas as formas. Essa guerra sem bombas, sem tiros – será que até os milicianos pararam? – é realmente o que alguns precisavam para notar o quão essencial é a luta por justiça social: quando uma doença assola as famílias, pouco importa sua origem, raça, classe, gênero... Será? Pouco importa mesmo? Pouco deveria importar. Mas não é necessário muito esforço para perceber quem mais sofre com essa crise e não só com essa crise, mas com esse modelo de negócio que criamos para nós mesmos. Como li uma Quilombola urbana publicar no Facebook outro dia: “esse vírus veio matar os pobres. Ou morremos de fome porque não podemos sair para trabalhar, ou morremos porque saímos e pegamos a doença”. Acredito que o caráter noticioso do Coronavírus é tão grande, porém, em função de ter alcançado em larga escala a classe média alta – o novo vírus é considerado “doença de rico” ou, ainda, outro termo que vi circular pela internet, “peste branca”. Quem afinal trouxe o vírus ao Brasil? Percebemos diariamente os grandes veículos de comunicação noticiarem as mortes na Europa e nos EUA, já na África...

 

A crise puxa a toalha da mesa e joga na cara daqueles que ali sentaram para desfrutar do banquete os tantos motivos pelos quais o capitalismo nunca foi viável. Ainda há – e certamente haverá – uma distância incalculável entre quem planta e colhe, quem cozinha, quem serve e quem desfruta da comida. Um relato de um motociclista trabalhador de aplicativo viralizou nas redes sociais: “Sabe o que é estar levando comida nas costas com fome?”. Precisamos falar, mais do que nunca, sobre soberania alimentar. Termo cunhado em 1996 pelo movimento internacional de agricultores A Via Camponesa, a soberania alimentar foi definida como “o direito de cada nação a manter e desenvolver os seus alimentos, tendo em conta a diversidade cultural e produtiva”. Basicamente ter condições plenas de decidir o que se cultiva e o que se come – e isso passa pelo acesso à terra, à água, às sementes, à energia, bens naturais apropriados por transnacionais que hoje, inclusive, dificultam ou impedem a subsistência de diversos povos tradicionais (indígenas e quilombolas) quando invadem seus territórios.

 

Temos um modelo econômico que privilegia a exportação e o alimento transgênico (envenenado) – os donos das multinacionais utilizam o nosso solo para plantar a soja que alimenta o gado da China que alimenta a população... Percebe o círculo? O pequeno produtor, brasileiro, que dentro dessa crise do Coronavírus é inclusive responsável por realizar uma série de doações – vide “MST doa 12 toneladas de arroz orgânico para combate à fome em meio à pandemia no RS” – precisa, diariamente, concorrer com o agronegócio que aparece para privatizar os bens naturais, invadir os territórios de populações tradicionais com o objetivo de instalar sistemas de monocultura para exportar commodities depois de usar nosso solo, nossa água e nossa energia e ainda matar nosso povo. O que isso tem a ver com o Coronavírus, afinal? Tudo. Tudo porque a crise gerada por esse vírus pode proporcionar um momento de transição econômica que precisa ser pautado pelo modelo de negócio que adotamos para nossa subsistência – todo mundo come – e também pela forma como consumimos tudo o que consumimos.

 

Nesse momento, diversos são os movimentos para apoiar pequenos produtores e empreendedores locais, desde pessoas oferecendo suas redes para divulgarem o trabalho dos autônomos até campanhas de incentivo ao consumo no mercadinho do bairro, à compra de orgânicos direto do produtor, entre outros. Estamos, sim, repensando a forma como consumimos e questionando o lugar das transnacionais na nossa vida cotidiana. Precisamos incentivar que essa transição seja, entre tantas, também uma transição de consumo. Em confinamento percebemos que podemos viver com MUITO menos do que vivemos normalmente. Estamos imersos na sociedade líquida, fragmentada e de consumo excessivo e desnecessário, produzindo desperdícios diariamente em um ritmo tão acelerado que perdemos a noção das horas. Perceber que consumimos muito além do necessário é o que nos possibilita transformar nossa forma de consumo, e a partir dessa transformação virar uma chave, por menor que seja a porta alcançada a partir da nossa “bolha social” privilegiada. De porta em porta, abrimos um portal. Sem esquecer que nenhuma solução, seja para a crise do Covid-19, seja para o desmantelamento do sistema capitalista patriarcal, é individual. É justamente sobre a coletividade que todo esse cenário nos convoca a refletir. Toda e qualquer ação por justiça social é e será coletiva. Vamos juntas.

 

 

Luiza Dorneles – jornalista