ARTIGOS


O sonâmbulo do viaduto - Adeli Sell

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto,

Que, para ouvi-las, muita vez desperto

E abro as janelas, pálido de espanto…

Ele deu um salto com o susto do acordar. Caminhava pela Duque, sobre o parapeito do Viaduto. Por pouco, não despencara, como fazem os suicidas, para o leito da Borges.Estava recitando Olavo Bilac. Coisa que aprendera na escola primária.

 

 

Bilac, Castro Alves, Casemiro de Abreu:

Oh! Que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!

Ninguém ensinava Alceu Wamosy.

 

            Esta coisa de acordar no meio da noite ainda vai me arrebentar, pensou.

Noutra noite ouvira a nítida voz do Paulo José:

            “Eu lembro do meu primeiro encontro com Porto Alegre. A família vinha de Bagé, de carro, era noite, eu cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Av. Borges de Medeiros, ao lado da Av. Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental, maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas, mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito que a casa do meu avô, o Viaduto Otávio Rocha. Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais impressionantes a Piazza San Marco, Veneza, o Arco do Triunfo, o Coliseu de Roma, o Parlament House com o Big Ben, mas nenhum deles me fez o coração disparar como aquela visão dos meus oito anos. O Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento. ”

Foi na mesma noite turbulenta de vento rasgado, na Riachuelo (antiga Rua do Cotovelo) que, ao olhar as estrelas por sobre o Teatro São Pedro, se lembrou do sonho que o acordara.

            O prefeito Otávio Rocha lá por 1926 estava em conversa com o governador Borges de Medeiros. Haviam saído caminhando do Forte Apache em direção à Rua General Paranhos, que era um estreito beco na época....

            O prefeito dizia que tinha recebido do filho do Protásio Alves a notícia que que o pai cuidava da saúde da mãe no Rio, nas mãos do doutor Miguel Couto. “O Protásio mandou dizer que no Rio plantam árvores nas calçadas. Vou fazer isso aqui”. O Borges franziu a testa e nada disse, porque queria mesmo é discutir o começo das obras.

            Ninguém imagina que dali descia uma enorme ladeira até a Rua Coronel Genuíno. Durante alguns anos, a Borges, ou a General Paranhos, teve três apelidos populares: Travessa do Poço, entre a Duque de Caxias e a Riachuelo, Beco do Freitas, entre a Riachuelo e a Andrade Neves, e Beco do Meireles, da Duque para o Sul. 

Só a força castilhista poderia ter derrubado toda a tradição para impor o nome do ditador dos pampas.

            Volta a si de suas digressões e já o sol dá cores encantadoras ao espelho d’água do Guaíba. De noite é um drama. O sonâmbulo do Viaduto sonha todos os dias com os moradores de rua que se abrigam ali.

            Ele que veio do interior, como o Paulo José, e ficou mal com aquelas cenas que vê durante o dia quando passa ali e ainda à noite tudo aquilo volta a lhe atormentar.

            Que tormento com tanto local abandonado, cujos donos devem mais impostos para a Prefeitura que valem os prédios largados.

Agora isso não foi sonho: viu um vídeo de uma procuradora do município que agora a Prefeitura está encampando estes espaços por força de Lei.

Naquele dia dormiu bem.

            Em 1932, o Viaduto Otávio Rocha foi inaugurado.  Tratado de forma monumental. Era a Porto Alegre moderna, o perfil urbano do centro da cidade. Dois anos depois, no início da rua, era erguido o “Guaspari”, prédio também modernista.

Mas nem passados 50 anos de então, começou a era da Modernidade Suspensa.

Nem um século depois, temos uma cidade em decadência material, estética, desumana, desumanizante e cruel com a dignidade das pessoas.

            O sonâmbulo antigo se incorporou no corpo e na alma do filho que seguiu sendo sonâmbulo.

            Noite destas, assistiu a Brigada em ação. Uma mulher e um homem presos por tráfico e com pesadas dívidas para a Justiça.

            Noutra foi sonho mesmo: ouvia o tiritar de dentes de mendigos com o frio de lascar ao sopro inclemente do Minuano.

Sabia que só a pinga, só o corpo a corpo dos maltrapilhos poderia suportar aquilo.

A História a pulsar nas veias. A alma mais dolorida que o corpo.

Acordou numa noite destas, sentou-se na vasta biblioteca e pegou Kant, pensou em Kant, leu. Tomou um café e vira que o livro do Marshall Berman – Tudo que é sólido desmancha no ar” – estava ali com página marcada; tinha que terminar aquilo de uma vez.

            Sim, tinha certeza que a roda da História não volta; que tudo flui, pois, as águas dos rios inexoravelmente vão ao mar.

E que aquilo tudo tinha que mudar. Iria dormir mais naquele dia, levantar e caminhar mais pela cidade, para encontrar amigos com quem pudesse dividir medos e sonhos.

Encontrou vários.

Deixou de ser sonâmbulo.

Sem ser sonâmbulo continua sonhando todas as noites.