Fui presenteado pela Jaqueline Custódio com este texto sobre o patrimônio
Cultural de Porto Alegre. Compartilho da mesma opinião da Jaqueline, por esta razão compartilhamos e nos comprometemos a seguir juntos na luta pela preservação do patrimônio histórico e cultural da nossa cidade.
Grato Jaqueline pelo presente.
Breve apanhado sobre a situação do Patrimônio Cultural de Porto Alegre
Porto Alegre já foi reconhecida como referência em participação popular e também pela legislação avançada de proteção do patrimônio cultural edificado. Foi uma das primeiras cidades (se não a primeira) a ter uma lei que tratasse do inventário dos bens, com delimitação de conceitos, obrigações e deveres.
Infelizmente, em maio de 2019, uma nova lei sobre os procedimentos de inventário foi aprovada pela Câmara de Vereadores, com perdas expressivas para o patrimônio cultural de Porto Alegre. Pela nova lei, há previsão até de possibilidade de descaracterização do imóvel inventariado, se trouxer mais conforto ao proprietário.
A redução dos prazos de alguns procedimentos, especialmente aqueles que dizem respeito à resposta do Município, também dificultaram a proteção dos imóveis e apontam para outro problema: a falta de servidores para o desempenho de funções no âmbito da cultura. Hoje, a EPAHC (Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural) conta com pouquíssimos servidores.
O processo de manutenção e recuperação dos bens municipais tombados é outro ponto bem problemático. Alguns exemplos: a Casa Godoy, que hoje abriga a Coordenação da Memória Cultural da Secretaria Municipal de Cultura, ainda está à espera de restauração, em que pese já tenha, há anos, um projeto pronto.
Outros exemplos emblemáticos: a Casa Azul, caso em que o Município foi condenado junto com os proprietários a restaurá-la; a Casa Elétrica, tombada em 1996, e que está prestes a desabar; o calçamento da Rua da Praia, em estado lastimável.
Não menos importante é o Viaduto Otávio Rocha. Com projeto de recuperação pronto desde 2015, a falta de manutenção e conservação originou uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Estadual (processo n.º 001/1.10.0053421-0). Sua restauração foi pautada pela 1º Região de Planejamento do Orçamento Participativo, em 2010, e como meta no Plano Plurianual, a partir da solicitação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Ambiental (CMDUA). Recentemente, o projeto passou pela EPAHC e pelo COMPAHC, na tentativa de viabilizar a recuperação do viaduto.
Se formos falar de imóveis inventariados, que em tese teriam menos restrições para sua preservação que os tombados, há uma grande listagem. O inventário dos imóveis do bairro Petrópolis, que originou a iniciativa de alteração da lei dos inventários, ainda está em tramitação e corre sérios riscos de ter parte destes imóveis retirada da listagem, por empecilhos burocráticos, dentre eles a falta de técnicos em número suficiente para dar conta do trabalho e ações judiciais.
Em relação às políticas públicas relativas ao patrimônio cultural edificado, um instrumento muito importante e que estava sendo bem empregado era o FUMPOA (Fundo Monumenta Porto Alegre). Era um fundo usado para financiar “a recuperação e reforma de imóveis privados tombados ou inventariados pelo patrimônio histórico e, havendo disponibilidade, para os demais imóveis tombados ou inventariados existentes no Município”. Tinha origem em um convênio com a União - ainda vigente – e se retroalimentava, com o pagamento dos empréstimos a juro zero. Este fundo, embora tivesse cerca de R$ 11 milhões em caixa, foi extinto por uma lei municipal (Lei Complementar n.º 869/2019). O comitê gestor chegou a ser instituído, em 2019, mas o atual prefeito negou-se a assinar o decreto de nomeação, pois, desde 2018, já havia decidido extinguir o fundo.
Ainda no que diz respeito aos fundos, os que são ligados à secretaria municipal de cultura, não têm recebido o aporte de recursos para desenvolvimento do setor, inclusive desobedecendo ao comando legal de repasse percentual do Fundo de Participação dos Municípios. Ressalte-se que o Fundo Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (FUMPAHC) também se destina à recuperação e preservação do patrimônio histórico e cultural da cidade pertencente ao Município e que poderia ser aplicado, pelo menos, na manutenção e zeladoria dos bens públicos.
Importante destacar o recorrente vandalismo dos nossos monumentos espalhados pela cidade. Em que pese a iniciativa privada, através de leis de incentivo à cultura – dinheiro público – venha desenvolvendo projetos de recuperação de nosso acervo, a restauração, por si só, não é suficiente para que as estátuas e monumentos não voltem a ser vandalizadas. Muitas, em questão de dias. Contudo, um exemplo de sucesso foi a restauração do monumento a Júlio de Castilhos, na Praça Marechal Deodoro, mais conhecida como Praça da Matriz. Naquele caso, houve envolvimento daqueles que frequentavam a praça, como os skatistas, em momento anterior ao início dos trabalhos, o que resultou numa visão conjunta do lugar, reforçando o pertencimento do grupo ao local.
O que se tem observado é um completo descaso com o Patrimônio Cultural da cidade, sendo apenas incluído em políticas públicas de privatização e/ou terceirização, como é o caso do Mercado Público, da Cinemateca Capitólio e da Pinacoteca Rubem Berta, para ficar nos exemplos atuais.
No mais, é considerado obstáculo para o crescimento do setor imobiliário e considerado “um problema”. Junto com o inventário de Petrópolis, o caso da Fazenda do Arado também enfrenta um embate com a construção civil. Contudo, em relação ao Arado, fica clara a necessidade de ver o Patrimônio não mais como histórico, mas sim, como cultural, em sentido amplo. Lá encontramos patrimônio arqueológico, ambiental, paisagístico, imaterial e material, que precisam ser integrados ao tecido urbano, de forma a serem preservados.
No que diz respeito ao Patrimônio Imaterial, o Município já possui regulamentação. Trata-se da Lei n.º 9.570/2004, promulgada também de maneira bastante inovadora, haja vista que o decreto nacional de registro destes bens só foi publicado em 2000 e o Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN foi criado em 2004, para estruturar e sistematizar a política de salvaguarda, mesmo ano da promulgação de nossa lei.
A citada lei estabelece a criação de programa visando à implementação de política específica de inventário, referenciamento e valorização desse patrimônio. Contudo, este programa não foi executado e o que se tem hoje são apenas alguns registros, como o do Bará do Mercado e o da Feira do Livro.
Algumas propostas para implementar políticas públicas que tratem diretamente do patrimônio cultural:
- No caso do patrimônio edificado, um conjunto de ações que possibilitem os proprietários particulares preservarem seus bens de forma menos onerosa. Nesse sentido, a recuperação do FUMPOA, possibilitando empréstimos acessíveis.
- Também estimular a qualificação e formação de mão-de-obra para os trabalhos de conservação e restauração, hoje bastante escassa. Profissionais como carpinteiros, calceteiros, pintores, e também restauradores, de modo geral.
- Ampliar os benefícios fiscais para proprietários de bens imóveis inventariados ou tombados, como, por exemplo, a isenção desburocratizada de IPTU.
- Educação Patrimonial, de forma ampla, para possibilitar a compreensão, conhecimento e preservação de nosso acervo. A sensibilização da sociedade para a preservação de sua memória e história é fundamental para a manutenção de nosso patrimônio cultural (como foi o caso do Monumento a Júlio de Castilhos, por exemplo).
- Implementação do programa municipal de Patrimônio Imaterial.
- Concurso público para servidores da cultura, que não ocorre há muitos anos.
- Revisão da legislação municipal de proteção do Patrimônio Cultural (especialmente a lei dos inventários).
- Avaliar e revisar a composição do Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (COMPAHC)
- Implementação das práticas de inventários afetivos.
- Estimular a participação popular nos processos envolvendo patrimônio cultural, através de conselhos municipais, de associações comunitárias e instituições culturais, entre outros.
Jacqueline Custódio
Mestranda do PPGMuspa/UFGRS
Coordenadora do Colegiado de Memória e Patrimônio/RS
Coordenadora Adjunta do Núcleo/RS ICOMOS Brasil