COLUNISTAS


Silvio Meincke - O que me ensina a pandemia

Na condição de quem mora na Alemanha, acompanho de perto o desempenho do governo alemão em dias de coronavírus. Raros momentos da história mostram com tanta clareza a importância que tem a credibilidade de quem assume funções na política. Observamos que as autoridades, em todos os níveis, o presidente, a chanceler, os governadores e os prefeitos cultivam permanente diálogo com a ciência e entre si. Assim podem dar orientação consensual e granjeiam, por essa razão, a confiança e a segurança necessárias para que a população enfrente o vírus coletivamente e com sucesso satisfatório, até esse momento.

Em relação às medidas que foram tomadas para conter o vírus, ouço duas posições antagônicas, em nível mundial: A primeira corrente deseja que tudo seja como antes e que voltemos a produzir, a consumir e crescer no ritmo que vínhamos até a crise nos barrar. A segunda corrente não quer isso. Ela diz que não devemos voltar ao ritmo de antes, porque a crise nos mostra que devemos mudar.

Por exemplo, a pandemia ensina que o vírus, ainda que não selecione seus hospedeiros por nível social, provoca o maior número de vítimas nas camadas sociais vulneráveis, onde não somente mata mais mas também causa as maiores cargas emocionais e as maiores consequências financeiras. As pessoas empurradas para as margens não têm o mesmo acesso aos recursos que têm as pessoas do centro, nem mesmo na Europa Central riquíssima. A vulnerabilidade já era conhecida, mas o vírus invisível tornou mais visível essa realidade para quem quer enxergá-la. Por isso, a segunda corrente diz que não devemos simplesmente voltar ao que era antes.

A crise mostrou a importância do trabalho de enfermeiros e enfermeiras, improvisados ou concursados, emergenciais ou diplomados, seja nas casas particulares, seja nas clínicas de primeiros socorros, seja nos grandes hospitais. Vimos com clareza maior do que antes que é necessário valorizar o seu trabalho, não somente com aplausos, mas também com redução da sobrecarga, que sofrem devido a falta de profissionais, e com melhores salários.

O vírus invisível tornou visível a exploração que sofrem operárias e operários terceirizados dos frigoríficos e das colheitas sazonais (300.000 romenos somente para a colheita de espargos da Alemanha), aglomerados em alojamentos coletivos sem o desejado conforto e sem a necessária higiene, porque são eles que pagam o preço da concorrência que fazem entre si as grandes redes de supermercados na aposta de quem vende mais barato.

O vírus também mostra, durante os dias de reclusão da família, que a mãe volta a assumir a carga maior, seja de trabalho, seja de stress emocional, também nos países que apresentam um avanço formidável na emancipação das mulheres e na divisão das tarefas do lar.

Vou ficar nesses poucos exemplos que são apontados como motivo pelas pessoas que não querem voltar à situação de antes, e poderíamos acrescentar que o vírus mostrou também a importância que tem o pessoal que recolhe o lixo, que trabalha como caixa nos supermercados ou que traz à nossa porta o jornal diário e as cartas do correio.

Os exemplos acima, que poderiam ser aumentados, também mostram que as leis do mercado neoliberal, na sua dinâmica de oferta e de procura, não regula, por si só, nem mesmo as exigências mínimas de uma sociedade igualitária e justa, e que a justiça social só pode ser formatada por um Estado decididamente presente e forte, suficientemente orientador e competente para circunscrever os necessários limites ao mercado.

Na minha condição de quem atua em comunidades eclesiais, alegro-me quando vejo colegas e membros das comunidades que resistem à volta ao passado recente, anterior ao vírus, principalmente porque sentem empatia com as famílias que estão sendo atingidas mais severamente pela crise. Um grande número de pessoas também gosta de ouvir a frase do poeta Manoel de Barros quando ele diz que gosta mais da velocidade das tartarugas que dos mísseis. Essas pessoas sabem que a velocidade das nossas correrias, até mesmo quando consumimos lazer e descanso, exaure a terra e os recursos naturais; e viram que a redução da velocidade que o vírus impõe devolve fôlego ao meio ambiente.

Quando amigos e amigas me perguntam como se pode explicar que o povo brasileiro elegeu, para o governo atual, políticos de biografia comprovadamente não apropriada e de conhecida falta de credibilidade, eu respondo, geralmente, que essa é uma longa história com raízes profundas. Despeço-me, então, das pessoas que me perguntam e saio ruminando a minha tristeza.

 

Silvio Meincke, teólogo.