ARTIGOS


O cabimento do abuso de poder religioso no direito eleitoral

Autores: Pedro Wortmann e Julio Vogt

 

 

O Direito Eleitoral vem gozando de um recente destaque na esfera pública em virtude dos acontecimentos no cenário político nacional. Temas como inelegibilidade, aplicação da denominada lei “ficha limpa” e hipóteses de propaganda eleitoral antecipada, antes restritas a um nicho acadêmico e profissional, têm sido objeto de debates acirrados nos meios de comunicação e no próprio espaço público. Diante desta projeção, ao sair das catacumbas, temos como primeiro reflexo o fato deste campo da ciência jurídica ser visto cada vez pela população como algo palpável e como um debate necessário para eventuais reformas. Desta forma, a Justiça Eleitoral vem sendo convocada tanto para prestar contas como para manifestar sua autoridade quando se está diante de possível ofensa à lisura das eleições e de interferência indevida no processo de escolha do eleitor.

            Neste passo, a discussão acerca da existência da figura do abuso de poder religioso vem sendo objeto de atenção do Ministério Público Eleitoral nos últimos anos tendo em vista possível violação ao direito fundamental do voto sem interferências indevidas. De acordo com entrevista prestada por Nicolao Dino, Vice Procurador Geral Eleitoral em 2016, este fenômeno vem ganhando cada vez mais repercussão pela potencialidade de prejuízo à lisura da campanha, seja pela utilização dos recursos das igrejas, seja pelo convencimento de eleitor através dos signos ou liturgias religiosas[1]. Neste passo, acredita-se pertinente o conceito de abuso de poder religioso elaborado por Amilton Kufa, advogado e fundador da Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político, definindo-o como desvirtuamento das práticas e crenças religiosas, visando influenciar ilicitamente a vontade dos fiéis para a obtenção do voto, para a própria autoridade religiosa ou terceiro, seja através da pregação direta, da distribuição de propaganda eleitoral, ou, ainda, outro meio qualquer de intimidação carismática ou ideológica[2]. Portanto, este prejuízo seria decorrente justamente no uso indevido de uma situação com vistas a se exercer ilegítima influência em dada eleição e, sob hipótese alguma, se confunde com o direito constitucional da livre manifestação do pensamento. Ocorre que, apesar da relevância do assunto, ainda não há previsão legal para coibir tal abuso de direito, estando ainda a nossa legislação infraconstitucional restrita aos abusos de poder econômico, político e dos meios de comunicação.

            Esta omissão legislativa tem sido objeto de intensa discussão no Tribunal Superior Eleitoral, pois em março de 2017 manifestou entendimento acerca da inexistência da figura autônoma do abuso de poder religioso tendo em vista a (a) ausência de previsão na legislação infraconstitucional e (b) proteção constitucional conferida à liberdade de 

expressão[1], condenando o investigado pela prática de outra espécie de abuso – meios de comunicação e econômico.  Nesta mesma linha se manifestou o ministro Napoleão Nunes Maia Filho quando negou seguimento, em decisão monocrática, ao recurso de candidato que teve seu mandato cassado em virtude de utilizar espaço de sua Igreja e seus eventos religiosos para pedir expressamente votos dos fiéis[2]. Assim como na decisão  anteriormente citada, realizou o enquadramento do ilícito como abuso de poder de meios de comunicação, salientando, entretanto, que há afronta à lisura das eleições valer-se de determinada liderança espiritual para corromper a autenticidade do voto do fiel.

            Por outro lado, deve-se destacar que há também manifestação jurisprudencial recente reconhecendo a sua existência e sua aptidão para gerar efeitos sancionadores, notadamente no Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo[3]. Esta atual divergência jurisprudencial é reflexo da ausência de previsão infraconstitucional, de uma discussão incipiente do tema sob as lentes do Direito Constitucional e, a longo prazo, poderá se acentuar a partir da própria rotatividade de julgadores na Justiça Eleitoral. Esta oscilação de entendimentos acerca da existência ou da autonomia do abuso de poder religioso certamente afeta a própria cognoscibilidade das normas que orientam as relações jurídicas decorrentes de campanha eleitoral. Aliás, merece menção a obra de Gustavo Paim acerca da insegurança jurídica que caracteriza o Direito Eleitoral, enfatizando que a constante alteração legislativa e esta divergência jurisprudencial afetam a própria certeza de qual Direito estará posto aos participantes[4].

            Ocorre que, ao nos depararmos com a história recente das eleições brasileiras, nada indica que esta modalidade de abuso de poder cessará no pleito que se avizinha. E, diante da omissão do nosso Poder Legislativo quanto ao tema, caberá à Justiça Eleitoral manifestar-se quanto à existência do desvirtuamento de práticas e liturgias religiosas com o fim de convencer o eleitor. Espera-se que o Poder Judiciário, ao ser provocado, realize uma leitura dos fatos conforme a Constituição Federal para que, independentemente de sua posição, prevaleça a razoabilidade jurídica e a autenticidade do voto.  

 

 

 

 

[1] MADEIRO, Carlos. Procuradoria-Geral Eleitoral vê abuso de poder religioso como “frequente” e difícil de evitar.  Universo Online, São Paulo, 12/08/2017. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/08/12/procuradoria-geral-eleitoral-ve-abuso-de-poder-religioso-como-frequente-e-dificil-de-evitar.htm

[1] KUFA, Amílton Augusto. O controle do Poder Religioso no processo eleitoral, à luz dos princípios constitucionais vigentes, como garantia do Estado Democrático de Direito. Revista Ballot, Rio de Janeiro, V. 2 N. 1, Janeiro/Abril 2016, pp. 113-135. Em http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ballot .

[1] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário nº 265308. Recorrente: Valdemiro Santiago de Oliveira e outros. Recorrido: Ivo Cassol e outros. Relator: Henrique Neves Da Silva. Brasília, Diário de Justiça Eletrônico, 05/04/2017, página 20/21.

[1] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário nº 224193. Recorrente: João Luiz Rocha e outros. Recorrido: Ministério Público Eleitoral e outros. Relator: Napoleão Nunes Maia Filho. Brasília, Diário de Justiça Eletrônico, 19/05/2017, páginas 51/62.

[1] SÃO PAULO. Tribunal Regional Eleitoral. Recurso n° 26107. Recorrente: Coligação Renovação e Mudança. Recorrido: Célio José de Oliveira e outros. Relator: Marcelo Coutinho Gordo. São Paulo, Diário da Justiça Eletrônico, 15/05/2017.

[1] PAIM, Gustavo Bohrer. Direito eleitoral e segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.