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Diógenes Júnior - O Brasil sacrificado no altar do deus mercado

O brasileiro que sai às ruas pedindo para que se despreze os apelos que o mundo inteiro faz pelo isolamento é o cidadão de bem que desce a ladeira, de cabeça para baixo, e cantando o Hino nacional e plantando bananeira.
Numa linguagem metafórica, eu poderia dizer que o cidadão de bem que pede a volta ao trabalho nesse momento de pandemia está com pesos bem pesados amarrados aos pés e as mãos vertendo sangue, cheias de bolhas por caminhar de ponta cabeça.
Orgulhoso, o cidadão de bem exibe toda a musculatura de sua absoluta falta de empatia.
Sua absoluta falta de respeito pela vida.
Desde 2013 observo manifestações da direita raivosa e chucra, que na verdade são eventos digamos, “cívicos”, eventos que reúnem uma fauna sui generis, com a presença de caricaturas de caricaturas.
Gente fantasiada de Batman, outro com um terno metade verde amarelo, metade azul, branco e vermelho — não sei como conseguem unir tais cores pois, sabemos, “a bandeira deles jamais será vermelha”.
Pois bem, é engraçado, por um lado, ver um espantalho de si mesmo fantasiado de Capitão América nas manifestações da direita brasileira chucra, em uma das mãos um escudo amarelo com um rosto grotesco do bolsonaro num esgar, olhos esbugalhados, desenhado em preto, e na outra mão uma bandeira de Israel.
De tão surreal que é, se torna engraçado, mas na verdade é extremamente preocupante.
Há todo um simbolismo nessa imagem estapafúrdia.
Uma pessoa, em uma “manifestação em favor da economia e do emprego” usando a fantasia de um personagem que foi criado para enaltecer e perpetuar pelo mundo, através do cinema e da TV (sim, eles investem pesado e são bons nisso) a “superioridade” norte americana?
Fosse só isso já seria gravíssimo, mas e a bandeira de Israel?
Pois é.
Aí é que, a meu ver, está o maior perigo.
Todas as micaretas fascistas têm como um dos pilares a religiosidade.
Deus, nessas manifestações, é um dos principais protagonistas nesses atos.
Para os tais, deus é um chancelador de suas atitudes, infalível e inquestionável.
Para o bem e para o mal, sendo que na maioria das vezes, para o mal.
Mas o que seria o bem ou o mal para essas pessoas, já que o deus delas a tudo chancela?
O deus mercado.
Seus êxitos são fruto da graça desse deus mercador.
Seus equívocos, da vontade d’Ele.
É a infalibilidade divina. Inquestionável.
Há algum tempo uma cidadã de bem em Esteio, cidade no interior do Río Grande do Sul, pegou uma vasilha cheia d’água e jogou numa senhora que dormia abrigada sob a marquise de um prédio.
Desorientada e atônita com a agressão absolutamente injustificável, ainda foi obrigada pela agressora a deixar o local e recolher o único bem que possuía, agora molhado por conta da insanidade da cidadã de bem.
Um cobertor roto, surrado.
Quem chancelou a atitude da cidadã de bem?
O deus dela. Em sua mente obtusa, ela é “filha do deus que tudo pode” e logo, por osmose, ela pode tudo também.
Ela é bem sucedida financeiramente. Tem casa, carro, jóias, dinheiro. Tudo fruto da sua fé em deus.
Já a moradora em situação de rua está na rua porque é pecadora, é vagabunda e gosta de dormir na rua, no frio.
É da vontade de Deus que ela durma na rua, e foi investida da autoridade divina que a cidadã de bem expulsou a cidadã brasileira, porém não de bem, de um logradouro público.
É da vontade de Deus que seja assim.
Historicamente, qualquer certeza de “endosso divino” sempre foi a principal causa das maiores tragédias da Humanidade.
Nas micaretas fascistas, agora “pela economia e pelo emprego”, todavia contra a vida — o que importa a vida perto do dinheiro? não faltaram rezas e orações entremeadas pelo Hino Nacional e “Aleluia”, além de música sertaneja, dita universitária.
O cidadão de bem carece de identidade própria, então esse deus que a tudo permite e chancela lhe cai como uma luva.
O deus mercado deve rir dessa gente que ri vergonhosamente.
De indigente moral, com parâmetros morais que vão de estacionar em fila dupla (é só um minuto seu guarda”) passando por jogar água numa moradora em situação de rua, atear fogo em índios, numa mulher à espera do ônibus — pois achou que “era uma prostituta”, e chegando às vias de fato de sair com seu carro de luxo na madrugada e executar a tiros um catador de papel, o cidadão de bem encontra refúgio nos braços do deus dele, esse deus que a tudo permite, e que a tudo chancela.
Esse deus está presente nas carreatas “pela economia e pelo emprego” em cada gesto, em cada reza, em cada estrofe do Hino Nacional.
Esse deus, rei da teocracia israelense, representada pela bandeira na mão do Capitão América, é o deus dessa gente.
É o deus mercado o deus dessa gente.
O fanatismo religioso sempre andou de mãos dadas com os perseguidores da Ciência, os perseguidores do Conhecimento e da Cultura.
Se um dia conseguirmos sair dessa situação sufocante, teremos de reavaliar até que ponto o direito à liberdade de culto pode ser salvo conduto para que, em nome desse deus que a tudo chancela, se permita atentar contra a Ciência, contra a Educação, contra os saberes.
Atentar contra a vida.
Contra a Democracia, contra a soberania nacional, contra os Poderes.
Contra tudo e contra todos, contra nós, todos nós.
Sou ateu, mas se acreditasse em deus, esse deus que a tudo chancela jamais seria meu deus.
A moral da história dessa triste história é que o país caminha a passos largos para uma nova modalidade de governo, o semi parlamentarismo divino, uma espécie de regime onde o Estado, que já foi laico, será governado pelo líder de uma quadrilha cujo lema é “Deus acima de todos”, mas que na verdade é apenas o fantoche do deus Mercado.
Esse sim o verdadeiro deus deles, em matéria, capital e palpável, que puxa os cordéis e determina os rumos do país.
Deus mercado, deus que a tudo chancela, deus…
“Deus acima de todos”.
Deus! Essa gente fazendo tamanhas insanidades em teu nome, deus?
Deus…
Se eu acreditasse em algum deus, certamente esse não seria o meu.
O Deus que deveria existir deveria contra seu oponente, o deus mercado, agir.
Para mim Deus nem existe, mas se existe, deveria estar envergonhado de, à revelia, de tantas maldades e grosserias e agora atentados contra a vida, ser partícipe.
FIQUE EM CASA!

Diógenes Júnior é escritor, técnico em Informática e acadêmico em História. Paulistano de nascimento, caiçara de coração e porto alegrense por opção, escreve semanalmente para essa coluna.