ARTIGOS


Teoria e crítica do Estado de Direito

Por: Adeli Sell

(Resenha e análise crítica de artigo de Danilo Zolo)

 

 

I - INTRODUÇÃO

                O autor ao chamar a atenção no seu título com um "asterisco" para as contribuições de Luigi Ferrojoli , indica-nos que ele se aproxima da visão que os direitos subjetivos devem estar sob a égide de um Estado Garantista (de Direito).

                Ao abrir o debate, Zolo nos propõe o retorno do Estado de Direito ( e não "ao"), o que  é um indicativo categórico de que o Estado de Direito é uma formulação teórico-prática que dá legitimidade aos sistemas políticos, e não está sendo  analisando como parte de ciclos da História.

                O autor busca uma aproximação linguística entre o Estado de Direito e Rule of law. O que veremos se confirmar ao tratar da teoria do Estado moderno (europeu).

                Ele nos mostra dificuldades conceituais, porém reconhece a vinculação do conceito à imagem da civilização ocidental. Lembra-nos dos questionamentos de Carl Schmitt ao termo Estado de Direito, comparando-o ao uso plurisemântico da palavra Direito.

                O "retorno" do Estado de Direito por razões e circunstâncias políticas e orientações culturais faz o autor equiparar os dois conceitos de Estado de Direito e Rule of law, vinculando-os com a doutrina dos direitos subjetivos (ou "direitos fundamentais ").

                Esta noção coloca o Estado de Direito como uma teoria político-jurídica, tuteladora dos 'direitos do homem".

                Direitos do homem que são essencialmente liberais, construídos no decorrer do século XIX e XX.

                São direitos oriundos de uma filosofia "individualista" por essência, fonte primária de legitimação do sistema político.

                É preciso situar este debate - o texto é de 2006 – pós-derrocada do socialismo real, das guerras que assolaram o continente europeu, os genocídios – como em Ruanda - etc.

                O autor constrói a "história" da sua conceituação e teoriza acerca do Estado de Direito sem adjetivações como democrático, social, constitucional, apesar de, ao final, na crítica levantar senões ao cumprimento de direitos sociais no atual estágio dos Estados nacionais ou mesmo em nível de UE.

                O lema teórico "Estado de Direito " (Rule of law) já (insisto JÁ) faz parte da linguagem política e cultural do Ocidente.

                Em 12 de setembro de 2018, o Parlamento Europeu advertiu a Hungria por autoritarismo,  falando claramente  na  sua Resolução em Estado de Direito.

                Na China, fora do radar Ocidental, fala -se nos dias atuais em Estado de Direito e em profundas reformas de sua Constituição.

                Acertadamente Zolo afirma que seria grave ingenuidade por-se a procura de uma definição semântica unívoca e ideologicamente neutra de Estado de Direito

                Kimberley Motley, advogada americana, fala-nos como ela usa o conceito de Rule of law - Estado de Direito - para advogar no Afeganistão, buscando a partir de elementos formais da norma jurídica garantir a EFETIVAÇÃO de direitos.

                Seus vídeos aqui citado e sua vida de advogada são uma inspiração para entender o conceito ora em questão.

                Passados mais de uma década da edição do livro de Danilo Zolo, vimos que o conceito e uso do termo Estado de Direito vai além do continente europeu.

                O Afeganistão já citado, país asiático, em constantes conflitos, internos e externos, conservador em seus costumes, autoritário em ações de governo, passa por um processo que vale citar a introdução do artigo (Estabilização do Estado de Direito no Afeganistão):

                “A meta global do projeto de estabilização do Estado de Direito (RLS - Rule of Law Stabilization) no Afeganistão é melhorar o desempenho e a responsabilização do setor judiciário, de forma que os cidadãos possam solucionar litígios pacificamente, os julgamentos nos tribunais do país sejam exequíveis e decorram em conformidade com a lei, e que a formação em direito se fortaleça para preparar a próxima geração de juízes, procuradores e advogados. O projeto tem o objetivo de aumentar a legitimidade do governo afegão e melhorar a percepção do cidadão nesse sentido.”

            Uma coerente interpretação teórica do Estado de Direito é identificar as referências de valor, as modalidades normativas e as formas institucionais que aproximam as diversas experiências que se refiram ao Estado de Direito.

                Um debate necessário é suplantar a visão de Estado legal - Gesetzsstaat - dos nazistas, que diferentemente de seu maior tutor Carl Schmitt, não negaram o Estado de Direito.

                Estado legal, em regra, é uma visão autoritária. Como o Estado policial o é também.

1.HISTÓRIA

  • As experiências históricas do Estado de Direito

- Experiência do Rechtsstaat alemão;

- Rule of law;

- variante americana do Rule of law;

- Êtat de droit francês.

1.1.1 Rechtsstaat

                É preciso tentar identificar as referências de valor, as modalidades normativas e as formas institucionais que aproximam as diversas experiências que se referiram – ou foram referidas – à noção de Estado de Direito. Há assim mesmo uma ampla discricionariedade do intérprete, para optar e sinalizar para a sua “coerente” interpretação.

                Zolo busca nos elementos centrais do pensamento liberal clássico, na tutela pública dos direitos fundamentais, na separação dos poderes os elementos constituintes do Estado de Direito.

                Para a visão alemã, diferentemente daquela dos revolucionários franceses que se atinham no cerne da soberania popular, a fonte dos direitos é o poder legislador do Estado, no qual se expressa a primeira identidade espiritual do povo.

                É o poder legislativo quem decide e disciplina a atribuição dos direitos subjetivos.

                E Zolo sinaliza que o uso arbitrário do poder legislativo não é considerado, porque esta visão assume a perfeita relação entre vontade estatal, legalidade e legitimidade moral e toma como certa a confiança das pessoas neste processo.

                Critica-se como pendente ao autoritarismo por não ter controle de constitucionalidade.

                Na Alemanha há a Corte Constitucional formada por 16 membros.  Os membros da Corte são eleitos para mandatos de doze anos, sem reeleição. Metade de cada turma é indicada pela câmara baixa do parlamento e a outra metade pela câmara alta.

1.1.2 O Rule of law

                Igualdade jurídica dos sujeitos é o principio guia do Estado de Direito inglês.  Opõe-se, portanto, a privilégios pessoais, faz frente ao exercício arbitrário ou discricional do Poder Executivo.

                De um lado, temos a soberania legislativa do Parlamento; de outro, a tradição da “common law”, administrada por juízes ordinários.

                E a tutela dos direitos subjetivos, centro do Estado de Direito, foi assegurada mais pela jurisdição das Cortes de “common law” do que pelo Parlamento.

                Na Inglaterra, o Parlamento pode modificar a Constituição. Não tem órgão de controle de constitucionalidade dos atos legislativos.

                Ousaríamos dizer que elementos constitutivos deste Estado de Direito Inglês estão esculpidos na Carga Magna de 1215. Vejamos:

                “(...) a nova lei dizia que o rei não poderia mais criar impostos ou alterar as leis sem antes consultar o Grande Conselho, órgão que seria integrado por representantes do clero e da nobreza. Além disso, nenhum súdito poderia ser condenado à prisão sem antes passar por um processo judicial (...)”.

                Longe ainda do princípio da igualdade jurídica dos sujeitos, mas surge aqui a força do Conselho – Parlamento – e um freio ao poder do Executivo.

                Os recentes embates na Inglaterra, com a queda de Cameron, após o Brexit, a ascenção de Teresa May, sua queda, eleição de Boris Johnson como suas dificuldades em resolver a “saída” da União Europeia são demonstrações do poder do Parlamento Inglês.

1.1.3 Rule os law americana

                A visão moderada e liberal de Hamilton e Madison se sobrepujou à visão filosófica democrática de Jefferson (“Quando as pessoas temem o governo, isso é tirania. Quando o governo teme as pessoas, isso é liberdade)  e Paine. Na origem havia uma visão fundamentalista da liberdade e da propriedade,

                A soberania da Constituição foi posta em direta oposição à função legislativa do Parlamento federal. Havia no bojo desta visão um medo das ameaças de circunstanciais maiorias parlamentares. Surgiu assim uma Constituição escrita mais rígida e o recurso da revisão legislativa judicial pela Suprema Corte. Juízes teriam mais condições técnicas de garantir a correta interpretação do ditado constitucional.

                Nos EUA temos a Suprema Corte com nove juízes, nomeados pelo presidente após aprovação do Senado.

1.1.4 Êtat de Droit

                O objetivo central do Estado de Direito são a tutela dos direitos subjetivos, em relação ao arbítrio já ensinava Carré de Malberg.

                Na França, o vetor mais dinâmico havia sido a doutrina da soberana popular (ou nacional). Questionada pelos alemães que elegeram como fonte dos direitos o poder legislador do Estado, no qual se expressa a primeira identidade espiritual do povo.

                O poder constituinte era para a tradição francesa inexaurível. Mas Carré de Malberg opõe-se radicalmente à tradição jacobina, em nome de um Estado de Direito no qual todos os poderes , inclusive o Legislativo, estejam submetidos ao direito.

                O Parlamento é um poder, não constituinte, e deve ser submetido a limites e controles, da mesma forma com o poder administrativo (executivo)

                Um autêntico Estado de Direito deve fornecer aos cidadãos os instrumentos legais para se oporem também à vontade do legislador, no caso em que seus atos violem os direitos fundamentais dos primeiros.

                Neste sistema há uma nítida distinção entre a Carta Constitucional e a lei ordinária. O Parlamento deve respeitar os limites jurídicos impostos pela Constituição, renunciando a qualquer pretensão constituinte.

                Na França temos o Conselho Constitucional com nove membros, três são indicados pelo presidente da República, três pelo presidente da Assembleia Nacional e três pelo presidente do Senado. Um terço dos assentos são renovados a cada três anos. Ex-presidentes integram a Corte como membros nato vitalícios.

                O Conselho Constitucional (Conseil Constitutionnel) foi criado somente pela Constituição de 1958 com o fim de zelar pelo perfeito funcionamento das instituições francesas. No País, não havia controle de constitucionalidade judicial, porque o trabalho do legislador, status conquistado em função do voto, não era submetido ao Judiciário, composto por funcionários, não escolhidos pelo povo; havia a supremacia à lei.

2.O RULE OF LAW INGLÊS: UMA ‘EXCEÇÃO FUNDANTE”

                Como foi demonstrado,  as experiências  históricas de Estado de Direito, tem perfis diferentes, tanto em termos normativos quanto institucionais.

                O Rechtsstaat alemão concentra os atributos da soberania no poder legislativo. A tutela dos direitos subjetivos é confiada exclusivamente ao Parlamento, que é sua fonte originária e garantidora.

                Também na experiência do Rule of Law, a soberania pertence ao Parlamento, que quase só tem primazia sobre o Executivo. Não tem Constituição escrita, sendo um conjunto das  tradições judiciárias,  atos normativos, convenções e das práticas sociais.

                A elaboração normativa dos direitos subjetivos e a sua tutela são funções atribuídas às cortes ordinárias.

                A variante americana do Rule of Law propõe uma soberania estatal ainda mais restrita. Coincide com o texto Constitucional escrito e bastante rígido, que submete a limites todos os poderes do Estado, incluindo o poder legislativo.

                A definição dos direitos individuais depende muito da interpretação dos princípios constitucionais. Ou seja, por representação constitucional.

                No Êtat de droit a soberania coincide com o primado do Parlamento, entendido como expressão da soberania popular.

                Mas o Parlamento não é um poder constituinte: é apenas um dos poderes constituídos.

                O que faz do constitucionalismo inglês um fenômeno excepcional e fundante é o fato de ele ser um direito consuetudinário vivente.

                A formulação dos direitos individuais é o fruto de induções e generalizações normativas a partir de decisões particulares das Cortes em tema de liberdade de propriedade e de contrato.

                É a superação do “law in the books” pelo “law in action”.

                A “exceção fundante” do Rule of Law está no núcleo gerador de toda experiência ocidental do Estado de Direito, como o paradigma exemplar da proteção dos direitos individuais.

3.UM QUADRO TEÓRICO COERENTE E UNITÁRIO

                As peculariedades jurídico-institucionais que diferenciam entre si as experiências e as doutrinas do Estado de Direito dizem respeito a:

- modalidades de atribuição da soberania;

- mecanismos constitucionais e ás formas de tutela dos direitos subjetivos

                Cabe salientar que  as diversidades atenuam-se fortemente até desaparecerem por completo, podendo fornecer uma identidade conceitual precisa à noção de “Estado de Direito”.

                Estado de Direito é uma versão do Estado moderno europeu, no qual atribui-se ao ordenamento jurídico a função de tutelar os direitos subjetivos.

                Podemos dizer que o Estado de Direito resulta de uma evolução secular que leva à afirmação de dois princípios fundamentais:

                - difusão do poder;

                - diferenciação do poder.

                O princípio da diferenciação é expresso pela diferenciação do sistema político-jurídico com relação aos outros subsistemas ou como critério de delimitação, coordenação e regulamentação jurídica de distintas funções sociais.

3.1.Os pressupostos filosófico-políticos

                O individualismo é a premissa filosófico-politica geral do Estado de Direito e da doutrina dos direitos fundamentais, mesmo que soe como uma simplificação.

                A prioridade do Estado de Direito é priorizar os direitos do cidadão e reconhecer os mesmos, tutelá-los e promovê-los.

                Para conter o arbítrio do poder político, os teóricos do Estado de Direito julgam, em segundo lugar, que seja necessária a força do direito. O direito pode e deve operar como instrumento de ritualização do exercício do poder.

                É preciso que os poderes do Estado estejam vinculados ao respeito de regras gerais.

3.3 O princípio da difusão do poder

                No Estado de Direito, os indivíduos são titulares de pretensões legitimas e de micro poderes.

                Tratam-se de pretensões e de poderes que podem ser exercidos contra órgãos do governo político.

                O principio da difusão se expressa pela:

- unicidade e individualidade do sujeito jurídico.

                 O Estado de Direito considera todos os indivíduos como sujeitos do próprio ordenamento jurídico. Ainda há graves resquícios distintivos entre os indivíduos, mas que não são reconhecidos pelo Estado de Direito.

- igualdade jurídica dos sujeitos individuais

Todos os indivíduos são iguais perante a Lei. Tudo se trata e deve ser tratado de forma igual. E iguais devem ser todas as consequências jurídicas a partir de comportamentos equivalentes.

A igualdade formal significa supressão do privilégio enquanto discriminação normativa entre cidadãos que se encontrem em condições de fato juridicamente equivalentes.

- força do direito

                O Estado de Direito se empenha em garantir a cada cidadão s capacidade de prever as consequências jurídicas seja dos próprios comportamentos seja dos atores sociais com os quais entra em contato.

                Para que se possa falar de “certeza do direito” é preciso que os cidadãos estejam em condições de saber qual o direito vigente.

- reconhecimento constitucional dos direitos subjetivos

                No centro do Estado de Direito existe o reconhecimento dos direitos subjetivos como atributos normativos “originários” dos indivíduos, ou seja, a atribuição “positiva” de tais direitos a todos os membros do grupo político.

                Aqui, forçoso debater que na segunda metade do século XIX os direitos foram estendidos para os “direitos sociais”. Estes permanecem estranhos à lógica do Estado de Direito.

                Para o Estado de Direito a titularidade dos direitos civis e políticos deveria permitir a cada cidadão empenhar-se livremente na interação social. Logo, o chamado Welfare State não é abarcado pelo Estado de Direito.

                Vemos que em nenhum momento Zolo adjetiva o Estado de Direito, nunca tratou do Estado de “bem estar social” ou Estado Social, nem do Estado “Democrático” de Direito.

  • O PRINCÍPIO DE DIFERENCIAÇÃO DO PODER

                O princípio da diferenciação do poder tem dois aspectos essenciais:

                - o da autodiferenciaçao do sistema político-juridico em relação aos outros subsistemas funcionais;

                - o da diferenciação interna aos subsistemas políticos.

                Na autodiferenciação se diferencia pelo alto grau de autonomia em relação ao subsistema ético-religioso, econômico etc.

                Na diferenciação se mostra o seu alto grau de complexidade que vai desde aspectos de gestão, da atividade administrativa a processos eleitorais e partidos políticos.

  • A delimitação do âmbito de exercício do poder e de aplicação do direito

                Aqui operamos os conceitos de esfera pública e esfera privada. Dali se exclui a chamada “sociedade civil” da competência política e jurídica.

  • A separação entre instituições legislativas e administrativas

                        De um lado, o Parlamento que emana leis; de outro, os aparelhos burocráticos do Executivo e do Judiciário para aplicar as mesmas.

  • O primado do poder legislativo, o princípio da legalidade

        No Estado de Direito, os órgãos que tem o poder de emanar normas gerais (leis) gozam de um primado funcional com respeito aos órgãos que desempenham a função de regular os casos concretos.

        A reserva de legislação atribui ao poder legislativo a competência de emanar normas em matéria de direitos subjetivos, excluindo desta função tanto o poder executivo como o indivíduo.

  • A subordinação do poder legislativo ao respeito dos direitos subjetivos constitucionalmente definidos

        O legislativo tem como limite o respeito os direitos subjetivos emanados da Constituição, a ela ele deve se subordinar.

  • A autonomia do poder judiciário

        A magistratura judicante está submetida apenas à lei. É um espaço institucional neutro, “terceiro”, em relação aos interesses político-sociais em conflito.

  • O ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO, A ESTRUTURA FILOSÓFICO-POLÍTICA E OS LIMITES DE VALIDADE DA TEORIA.

        O roteiro histórico que traçamos ao ler Danilo Zolo nos leva a dizer que o Estado de Direito pode ser definido como a versão do Estado moderno europeu que, com base em uma filosofia individualista (com o dúplice corolário do pessimismo potestativo e de diferenciação do poder, atribui ao ordenamento jurídico a função primária de tutelar os direitos civis e políticos, contrastando com essa finalidade, a inclinação do poder ao arbítrio e à prevaricação.

        Aqui, anos depois do livro de 2006, podemos retomar a citação feita quanto à ação da advogada Kimberley Motley, no Afeganistão,  onde  afirma categoricamente fazer uso do Rule of Law nos tribunais de lá e na citação que fizemos acerca da- Estabilização do Estado de Direito no Afeganistão – mostrando que o conceito de Estado de Direito desborda as fronteiras europeias.

        O jurista Raimundo Faoro, em “ Os donos do poder – a formação do patronato brasileiro” – nos fala em “Estado burguês” – “expressão que fez carreira no mundo jurídico e político” – dizendo que este traduz o esquema de legitimidade do liberalismo capitalista. Ou seja, para traçar o perfil d’os donos do poder, Faoro se vale do conceito do Estado vigente para concluir como se formou o patronato político brasileiro. É um elemento para a nossa reflexão.

        Fazendo estes paralelos, poder-se-á abrir um debate como o conceito de Estado de Direito permeia ou não a formação de nossa Nação.

  • O ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO

        O Estado de Direito implica algumas opções acerca dos fins da política e do direito.

        A hostilidade em relação ao poder arbitrário e a certeza do direito remetem a uma nítida pressuposição de valor.

        O Estado de Direito não é um Estado de Justiça.

         É inconcebível fora de uma antropologia tipicamente “ocidental”, individualista, secularizada.

        Seria esta visão válida ainda nos dias atuais, com o mundo cada vez mais globalizado¿ Um mundo como Thomas Friedman descreve em “Quente, Plano e Lotado”, no qual parece questionar esta visão um tanto eurocêntrica de Danilo Zolo.

        Uma manchete como “Suprema Corte da China vai aceitar casos de propriedade intelectual” nos leva a uma similitude de norma ocidental clara: direito de autor e individualista.

        “O tema do “Estado de Direito” não é novo no discurso oficial do Partido Comunista Chinês (PCCh). Em 1997, o relatório adotado no 15o Congresso Nacional do PCCh declarou a importância de “governar o país de acordo com a lei e tornando-o um país socialista regido pela lei”. Em 1999, uma emenda à Constituição incluiu este tema no texto constitucional e desde então ele se firmou no horizonte da política chinesa.”.

        Em março de 2017 o tema Estado de Direito foi o tema de uma de suas duas sessões.

        A teoria do Estado de Direito implica algumas opções acerca dos fins da política e do direito. Repetindo, a hostilidade em relação ao poder arbitrário e a certeza do direito remetem a uma nítida pressuposição de valor.

  • ESTADO DE DIREITO E TEORIA DOS DIREITOS SUBJETIVOS

        A doutrina do Estado de Direito é provavelmente o patrimônio mais relevante que a tradição política europeia deixa em legado à cultura política mundial.

        Aqui, sim, a questão está bem posta pelo autor, pois graças ao histórico da luta pelos direitos subjetivos, especialmente no continente europeu que outras culturas farão uso adequado de seus pressupostos.

        O autor não nos fala do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia que devem ter tido heranças cruciais do Rule of Law como foi o caso americano estudado.

        Recentemente no Canadá, no caso Huawei, a ministra de Relações Exteriores do Canadá, Chrystia Freeland disse:

“Concordamos que o mais importante é respeitar o Estado de direito" e que "o processo judicial em andamento no Canadá seja apolítico”.

                Na Austrália, a 15 mil quilômetros da pátria da Rule of law, tivemos pela Suprema Corte uma decisão claramente que mexe com os direitos individuais, com direitos (nitidamente) subjetivos:

“A Suprema Corte reconhece que uma pessoa pode não ser nem do sexo masculino, nem do sexo feminino. Permite, assim, o registro do sexo de uma pessoa como ‘não especificado’”. Ou seja, surgiu o precedente legal para o chamado “gênero neutro”.

                A invenção do direito subjetivo como expressão jurídica da liberdade individual é a chave da sua originalidade e do seu sucesso.

                Zolo fala que o seu modelo não é apenas importante onde frutificou para ajudar a derrotar todas as formas de autoritarismo, como o fascismo, mas parece destinado a se impor no plano internacional como condição de racionalidade, de modernidade e de progresso nas culturas de todos os continentes, mesmo naqueles mais distantes da civilização ocidental, o que foi mostrado nos exemplos dados sobre o estágio atual na China e no Afeganistão.

                Para a universalidade do conceito é preciso resolver a relação entre modelo de Estado de Direito e a teoria democrática; soberania popular ou endurecimento do Bill of Rights constitucional; a universalização dos direitos subjetivos (entendidos como direitos do homem).

  • Estado de direito e democracia

                A doutrina do Estado de Direito se diferencia da ideia de democracia e de Estado Democrático, pois as instituições do Estado de Direito são indiferentes em relação a alguns aspectos centrais da concepção democrática do Estado.

                Não se empenha em temas como soberania popular, participação efetiva dos cidadãos nas decisões coletivas, pluralismo dos sujeitos da composição pública, as responsabilidades dos governos.

                O Estado de Direito parece ter mais sintonia com a inspiração liberal do que com uma filosofia que estimula a responsabilidade civil dos cidadãos, a transparência e a difusão da comunicação política, a validade da esfera pública.

  • Constituição, direitos subjetivos, soberania popular.

                Grosseiramente podemos falar em duas abordagens do tema: abordagem liberal e democrática.

        A abordagem liberal é típica dos Estados Unidos. Faz do Bill of Rights (1689) que compreende os 10 primeiros artigos da Constituição americana (ratificada em 21 de junho de 1788) a fonte da obrigatoriedade dos princípios normativos do Estado de Direito.

        Já a abordagem democrática faz do poder constituinte a fonte de toda possível legitimidade constitucional.

        A opção entre a abordagem liberal e a abordagem democrática resta ligada a considerações empíricas e a preferências ideológico-políticas amplamente opináveis.

  • Fundamento e universalidade dos direitos subjetivos

                Está vinculado este fundamento à aplicabilidade coercitiva dos direitos do homem.

                Bobbio sustenta a impossibilidade de uma base filosófica da doutrina dos “direitos do homem”

                Pode-se dizer que a doutrina dos direitos do homem carece de critérios de suto-regulação cognitiva.

                O catálogo de direitos se expande sempre mais.

                Mais importante que tudo é buscar uma aplicação prática da defesa e do cumprimento dos direitos subjetivos, dos direitos do homem.

  • ESTADO DE DIREITO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

                O limite de validade da doutrina do Estado de Direito deve-se ao seu restrito horizonte normativo, que não vai além do espaço político do Estado nacional.

  • A relação entre os Estados

                A doutrina do Estado de Direito não se ocupa das relações entre um Estado em particular e outros Estados. Ela diz respeito à soberania interna do Estado nacional e não toca nem nas relações políticas internacionais deste Estado.

  • A ordem mundial

                Os princípios do Estado de Direito nunca foram teoricamente vinculados ao tema da ordem e da paz mundial.

                Há hoje pensadores como os neokantianos e neokelsianos que propõe a aplicação dos princípios e das regras da Rule ofLaw para a construção de um sistema político e jurídico global.

  1. A CRISE DO ESTADO DE DIREITO

A complexidade social e os dilemas postos pelo processo de globalização levam à crise do Estado de Direito.

                A crise se põe pela falta de estruturas “garantistas” dos Estados ocidentais, a falta de proteção dos “direitos dos homens”. Tendo como base a ONU e ONGs milhões de pessoas são vítimas em todos os continentes de uma violação sem precedentes de seus direitos fundamentais.

                O medo, o terror, o desemprego, os migrantes, os preconceitos de raça e religião colocam em risco os preceitos fundantes do Estado de Direito que é o garantismo, em especial dos direitos subjetivos.

                Os direitos dos homens não apenas sofrem ataques como suas salvaguardas são precárias.

  • A crise da capacidade reguladora da lei e a inflação do direito

                Não estão em crise os pressupostos filosóficos do Estado de Direito, pois, depois da queda do marxismo real, o individualismo domina a cena mundial, o consumerismo (como nas argutas observações de Baumann) e o glamour pela privacidade e estilos de vida são a parte mais visível da sociedade moderna, individualista e hedonista.

                O que parece estar em crise é a capacidade reguladora do ordenamento jurídico, isto é, o “rendimento” em termos de efetividade normativa das prescrições da lei.

                O processo vai exigindo cada vez mais normas e cada vez mais detalhadas e particularistas levando até a inflação legisferante.

                Tanto o princípio de difusão do poder quanto o da diferenciação do poder são atingidos pela crise de capacidade reguladora do direito legislativo

                A hipertrofia normativa aumenta excessivamente o poder dos intérpretes e dos juízes, a ponto de configurar um verdadeiro poder normativo das cortes, de fato autorizadas a reescrever seletivamente os textos legislativos.

  • A efetividade decrescente da proteção dos direitos

                Os direitos individuais estiveram na nascente e foram funcionais para a economia de mercado; os direitos políticos favoreceram a inserção das classes laboriosas no interior do Estado liberal, já quando surgem os direitos sociais, estes caminham em direção para a esteira da igualdade, mas o mercado produz desigualdades que confrontam estes direitos.

                Cada dia que passa há menos direitos subjetivos e sociais.

                Esta derrocada merece um estado à parte, como também a derrocada dos Estados nacionais.

 

BIBLIOGRAFIA

CARDOSO, Antônio Pessoa.  O Conselho Constitucional Francês, in - https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI21710,31047-O+Conselho+Constitucional+Frances

MOTLEY, Kimberley. "2018 PILnet Global Forum: Keynote Speech with Kimberley Motley"; in - https://mail.google.com/mail/u/0/?hl=pt-BR#inbox/QgrcJHsNhNCXzpSCHZlFqvmZTMtwlpFszqb

MOTLEY, Kimberley.” Como eu defendo o Estado de Direito"; in - https://mail.google.com/mail/u/0/?hl=pt-BR#inbox/QgrcJHsNqLqkPZnPzsfZZpDptFngPJwbwMl

SOUSA, Rainer Gonçalves. "Magna Carta"; Brasil Escola. Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/magna-carta.htm>. Acesso em 02 de abril de 2019.

ZOLO, Danilo; COSTA, Pietro. Estado de Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006

INTERNET

- Estabilização do Estado de Direito no Afeganistão - http://www.tetratech.com/pt/projects/estabilização-do-estado-de-direito-no-afeganistão

As Duas Sessões e a promoção do Estado de Direito na China –

 http://www.chinahoje.net/as-duas-sessoes-e-a-promocao-do-estado-de-direito-na-china/

https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/internacional/2018/12/14/eua-e-canada-prometem-respeitar-estado-de-direito-no-caso-huawei.htm

Suprema Corte da Austrália reconhece gênero neutro, para quem não é homem nem mulher - https://oclickgospel.wordpress.com/2014/04/03/suprema-corte-da-australia-reconhece-genero-neutro-para-quem-nao-e-homem-nem-mulher/