Adeli Sell
"Água turva” nos chama para várias leituras. É o romance da rio-grandense Morgana Kretzmann.
Nascida na Região Noroeste do Rio Grande do Sul, ela escolhe este território complexo, mais especificamente a Reserva do Turvo, como lugar principal do enredo.
Lugar de histórias, como a passagem do Cavaleiro da Esperança, do massacre dos beatos, do Grupo dos 11, teve e tem muito "chibo", muito descaminho e contrabando. E isso continua tendo, agora com venenos para as lavouras do agro.
O contrabando e o descaminho dos vinhos estão ali, como a matança de animais silvestres, cuja carne vai para o outro lado do mundo, isto permeia a leitura.
Estes ilícitos envolvem, no romance como na vida real, os endinheirados locais, políticos dali como representantes na Assembleia e no Congresso, chegando à Presidência do país.
A água também se turva do sangue das mortes. Muitas mortes. Muitas coisas são turvas, e a autora traz alguma clareza para vários atos acontecidos.
É um livro da Companhia das Letras deste 2024. As suas 261 páginas são percorridas sem cansaço, pois a leitura é cristalina, diferente de seu ambiente, sempre turvo.
E por outro lado, pesado, denso, sintético, sem adjetivações, toda palavra e frase é aquela, não tem outra, serve como uma luva.
Tudo para falar de um ambiente que um dia um habitante local decidiu preservar, Sarampião, que acaba sendo ele o fio condutor da narrativa. De homem real, é também a estátua da entrada da cidade, ao lado da onça que mataram, que ele protegia, como um fantasma que sopra ventos.
Temos vários níveis de narrativa, uma pode ser a preservação ambiental, a sustentabilidade, outra vereda é a corrupção generalizada, ainda tem os dramas familiares, os segredos, os medos, os ódios são rancores, raivas, fúrias que perpassam vários momentos do drama.
De um lado, o velho Sarampião, doutro a bisneta Chaya, Olga, jornalista e assessora do deputado estadual corrupto, Heichma, Preta, prima de Chaya, comandando os Pies Rublos do outro lado do Rio Uruguai.
Não se podem menosprezar outros personagens, mas estes dão o enredo, são os nós que se atam e se desatam, para o bem e para o mal.
Quando uma ordem se recompõe, há um fato a desestruturar outra parte.
Há o momento em que as primas chegam à sua paz, recompondo a família em guerra, para juntas defenderem o Turvo, não matando mais animais, como era a atividade de Preta, dos Pies Rublos, é o menino rebelde que viu a morte do pai pelos guardas, talvez um tiro dado por Chaya, que rompe tudo, vai caçar Chaya numa cena digna de um bom roteiro de filme. As águas do Uruguai se turvam com seu sangue e ela desparece como seu bisavô Sarampião some quando da morte da onça Boca Braba. Depois se sabe de quem foram os tiros, segredo guardado por anos e anos, fato que rompe os tecidos frágeis daqueles núcleos familiares.
O grande avanço de tudo se dá pela ação de uma personagem que para o pessoal da região era mal vista, pelos malfeitos da juventude, botando fogo na estátua da figura icônica daquele espaço, Olga Befreien. Em Porto Alegre vira assessora do deputado Heichma. Um notório direitista, do Partido Nacional Ambiental, ligado ao presidente de extrema direita.
Na sua primeira volta ao local foi para uma audiência pública para defender a Hidrelétrica binacional Gran Roncador que colocaria parte do Turvo, outros locais e o próprio Salto do Ycumã debaixo de água, de um lago.
Na sua segunda volta vem com nitroglicerina na bagagem e no computador, documentos que mostram todo o esquema de corrupção. Depois de muita conversa, convence sua inimiga Chaya, das suas razões e mostrando o que tem, terá sua proteção para chegar à Argentina.
Jurada de morte, ela é sequestrada, mas não morre, foge e é salva.
Seus artigos percorrem o planeta, operações policiais realizadas, políticos e assessores presos.
Há muitos meandros que eu exploraria num debate sobre a obra.
Chaya tinha que tombar como tombou seu avô Sarampião porque são símbolos e como tal seus espíritos tem que pairar no ar, trazer vento quente, arrumar o ambiente.
Deem atenção aos nomes, sua sonoridade, significados possíveis, origens. Nenhum é por acaso.
Finalmente, diria que é um romance ecológico, devendo ser usado pelos ambientalistas como o mais moderno manifesto em defesa da Natureza, da Onça Pintada, do Turvo, do Salto do Ycumã.
Adeli Sell é professor, escritor e bacharel em Direito.