ARTIGOS


“Como as democracias morrem” (Adeli Sell)

(Reflexões a partir do livro de Levitsky e Ziblatt)

 

 

Democracias tradicionais entram em colapso! O livro começa perguntando e podemos dizer que sim: democracias se transformam e podem virar Estados autocráticos e totalitários.

         Em 2013, com as Jornadas de junho, víamos que algo estava fora do lugar em nosso sistema político. Poucos entenderam aquele processo. Gente de esquerda chegou a acreditar num renascimento de um movimento de base, mas, na verdade, no meio dele se gestava um golpe midiático, jurídico e parlamentar.

         Tempos depois escrevi no Sul 21 - https://www.sul21.com.br/colunas/adeli-sell/2015/11/as-mascaras-das-jornadas-de-junho-de-2013/       - As máscaras das jornadas de junho de 2013. Fui xingado. Está aí, infelizmente, o triste quadro. Por isso, a necessária leitura deste Como as democracias morrem.

         Análises de processos, de períodos, de concepções políticas, a realização da ciência política deve ser feita como as réguas do Direito para se chegar à Justiça. Aqui, os analistas usam meios, métricas que mostram o que foram e o que são as democracias, quais os elementos fundantes que não podem ser arrancados de uma Nação, sem levar uma parte da vida e do âmago das pessoas.

         Demagogos, lunáticos, outsiders são perigosos como poderemos ver. Como uma Nação, com seus fundadores da democracia como os EUA, elege um outsider como Trump?.

         Na sequência deste livro e sua análise, sugiro a leitura de A eleição disruptiva: por que Bolsonaro venceu, de Maurício Moura e Juliano Corbellini.

         A importância deste livro é que os autores analisam as coisas como eles foram ou são.

         No caso do Chávez, na p.15 nos dizem:

         “Quando Chávez lançou a sua prometida revolução, ele o fez democraticamente. Em 1999, realizou eleições para uma nova Assembleia Constituinte, na qual seus aliados conquistaram uma maioria esmagadora. Isso permitiu que os chavistas escrevessem sozinhos uma nova Constituição democrática, continuando, e, para fortalecer sua legitimidade, novas eleições presidenciais e legislativas foram realizadas no ano 2000. ”

         Ou seja, os autores mostram um processo. Diferentemente do debate rebaixado que se vê na mídia brasileira, como se Chávez-Maduro fossem desde sempre ditadores.

         Mostram a trajetória do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán: começou democrata para se tornar autoritário e antidemocrático, causando “surpresas”.

         Em contraposição às democracias, os autores listam quatro pontos indicadores de comportamento autoritário:

         - Rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas);

         - Negação da legitimidade dos oponentes políticos;

         - Tolerância ou encorajamento à violência;

          - Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia.

         No capítulo “Guardiões da América”, os autores nos guiam por um difícil período da democracia americana e como a democracia foi garantida, mostrando como não vingaram posições como a do governador da Louisiana que o historiador Schlessinger qualificou como “o grande demagogo do momento, um homem que parece um ditador da América latina, um Vargas ou Perón.”.

         O Estado de Direito não foi derrotado, apesar de personalidades como ele, como o anticomunista senador Joseph McCarthy, donde surgiu o termo macarthismo. E ainda bem que diferentemente da ficção do grande escritor Philip Roth Lindbergh não derrota Roosevelt.

         Apesar da fama e da barulheira, George Wallace também não chega à presidência: incitador da violência, transpirando ódio por todos os poros, falando do “respeito” ao povo para atacar a Constituição.

         E aí vale mais uma vez a voz e a clareza dos Federalistas, fundadores da democracia americana. Pensaram uma Constituição e formas de governo para resguardar a democracia.

         Hamilton disse: “A história nos ensinará que entre os homens que subverteram a liberdade de repúblicas, a maioria começou carreira cortejando obsequiosamente o povo, começaram demagogos e terminaram tiranos. ”.

         Por isso, falam tanto da Chávez, Erdogan, Orban, para relacionar a Vargas, Perón e agora, não seria mera semelhança, com o capitão Bolsonaro, no Brasil.

         Fazem uma análise da tentativa do industrialista Ford para chegar à presidência, mostrado que ele podia e tinha grande apelo popular, mas nada tinha a ver com o establishment político-partidário. Ou seja, fica demonstrado que os partidos fortes, as lideranças políticas, tinham grande força para barrar os aventureiros de fora, diferentemente do que aconteceu com o velho Partido Republicano que teve que ceder aos desejos de um outsider como Trump e fazê-lo presidente.

         Foi uma mudança significativa na história da democracia e na política partidária dos EUA.

         Os autores fazem um histórico do comportamento dos partidos Democrata e Republicano. Hoje, sabemos que os democratas são mais liberais e os republicanos são extremistas de direita.

         Os partidos foram formados para conduzir a política, que é e sempre foi um bom sinal da Política.

         Já falamos e repetimos com este padrão não havia espaço para “metidos” de fora.

         Trump furou esta bolha. Esta atitude vinha sendo tentada de há muito. No governo de Obama o impedimento feito pelos Republicanos para a indicação do nome em aberto para a Suprema Corte foi o mais forte indicativo.

         Alí terminam ou começam a terminar os dias de “tolerância mútua”, de disputas com civilidade.

         Apesar de Trump ter dado o bote, acertado, ganho com “Fake News” e com apoio de Putin, ele não pode e nem está conseguindo fazer o que quer...

         Os transgressores da democracia sempre têm seus inimigos e os constroem para se fazerem de vítimas. Trump tem os inimigos dos EUA, pois para ele Hillary virou bandida, dizia que ela tinha que ser presa, sem base alguma.  Doses de populismo, de machismo e misoginia, como se vê por aqui, nos dias atuais.  A esquerda é sempre inimiga, os petistas “acabaram” com a Nação é sempre o mantra deles; ataques às minorias e aos Outros. A alteridade é um conceito que não existe para os transgressores, como não existe em seu vocabulário e ações a dignidade da pessoa humana.

         Lá os ataques são aos imigrantes, aos mexicanos e aos latinos em especial, afora ataques a setores da mídia, aquela que não os bajula.

         Aqui, é a mesma coisa. Agora, podem ser os argentinos, numa grosseira intervenção na autodeterminação de um povo, num rebaixamento de relações com um grande parceiro cultural e econômico de nossos pais. Noutro momento é um ataque a Macron e a imagem de sua esposa, nunca antes vista sair da boca de um mandatário de uma Nação.

         Outro relato elucidador é do Fujimori, este sim um outro outsider, atacando a tudo e a todos, desdenhando o Congresso, xingando juízes de “lacaios” e “patifes”, mesmos adjetivos que ouvimos às pampas contra membros da nossa Suprema Corte. Sem análise séria de decisões, todos os 11 já foram ou são “patifes”, num jogo para acabar com o STF ou com o Congresso como querem os golpistas radicais, para quem a democracia nada conta.

         Os que golpeiam e matam democracias se utilizam de um evento ou fabricam-no. Fabricam um inimigo, gestam ou deixam que aconteça um ato de terror ou algo semelhante para ter um inimigo a atacar e assim ganhar uma eleição ou dar um golpe. É o roteiro que seguiu Ferdinand Marcos nas Filipinas.

         Sempre devemos lembrar-nos do incêndio do Reichstag na Alemanha que deu combustível para a investida de Hitler ao poder total.

         Uma crise de segurança facilitou a virada autoritária de Putin, como foi o caso das bombas e da Chechênia.

         Ali o povo se agrupou em torno dele, como foram todos os outros casos. Erdogan, na Turquia, recentemente utilizou-se das crises de segurança. Tema focal do candidato do PSL no Brasil.

         E aí sempre vem a pergunta: a quem e a que servem atos terroristas, golpes tresloucados e ações destes tipos¿. A quem serviu a “facada” em Bolsonaro¿

         Atos tresloucados ou armados jamais serviram e jamais servirão à democracia.

         E aí vem a pergunta: quais são as grades de proteção da democracia?

         O sistema constitucional de freios e contrapesos que foi projetado para impedir os líderes de concentrar (e abusar do) poder, ainda tem a força e o peso de impedir a sanha de totalitários?

As salvaguardas constitucionais em si mesmas são suficientes para garantir a democracia?

         Muitas vezes boas constituições, bem projetadas, bem-feitas falham na tarefa de salvaguardar a democracia.

         Todos achavam que o Estado de Direito daria conta da defesa da democracia alemã, mas Hitler usurpou tudo aos poucos para poucos anos depois da Constituição de Weimar ascender ao poder total.

         As constituições por mais perfeitas que pareçam ser elas são sempre incompletas. Pois sempre haverá lacunas.

         A Constituição americana parece ser um documento brilhante, mas gera diversas interpretações, no caso ela é quase silenciosa sobre o papel do presidente, ou seja, o que ele pode e o que ele não pode fazer.

         Alguns presidentes tentaram fazer de tudo para serem tudo, dominarem e mandarem, mas foram barrados em suas caminhadas autoritárias.

         Na atualidade, Trump tentou vários passos que não foram permitidos e ele teve que recuar dar passos atrás.

         Aqui, na Brasil, recuos e recuos teve que fazer o presidente, até mesmo em decretos e outros atos. No caso, de forma pouco usual, foi o Congresso que firmou algumas barreiras importantes, seja pelo papel do presidente do Parlamento ou pelo próprio parlamento, e é claro desde juízes de primeiras instâncias até o STF foram importantes em barrar sua volúpia ditatorial. Foram colocadas grades de anteparo, para a preservação da nossa jovem e frágil democracia.

         Segundo Levitsky e Ziblatt duas normas se destacam como fundamentais para o funcionamento de uma democracia:

- tolerância mútua;

- reserva institucional.

         A TOLERÂNCIA MÚTUA é: enquanto nossos rivais jogarem pelas regras institucionais, nós aceitaremos que eles tenham direito igual de existir, competir pelo poder e governar.

         Quando as normas de tolerância mútua são frágeis, é difícil sustentar a democracia.

         Já a RESERVA INSTITUCIONAL é o autocontrole paciente, com comedimento e tolerância, ou seja, a ação de limitar o uso de um direito legal.

         Não se pode violar a lei e nem seu espírito. Isto já vinha das antigas monarquias. Na democracia, ela é essencial.

         Ambas têm uma estreita relação, reforçam uma e outra mutuamente.

         Simples, mas essencial o exemplo dado: os chilenos diziam que não havia discussão que não pudesse ser resolvida com uma garrafa de vinho.

         Não foi o que aconteceu em 1973 com os canhões de Pinochet com a morte do presidente legitimamente eleito, Allende.

         Uma das melhores lições que tiramos do livro COMO AS DEMOCRACIAS MORREM é quando falam das regras não escritas da política norte-americana.

         Mostram como num período de profunda crise, como a Grande Depressão, o sistema de freios e contrapesos funcionou.

         A política americana não nasceu com normas democráticas fortes. Não havia grades de proteção.

         A polarização sobre a escravidão despedaçou a ainda frágil norma de tolerância mútua.

         No final do século XIX já havia elementos claros informais de tolerância que encorajava a reserva institucional permeando todos os ramos de poder dos governos, construindo um sistema de freios e contrapesos.

         Fortalecidos estão o Congresso e os Tribunais que se tornam cães de guarda da democracia, fiscalizam governos.

         Mesmo com a Emenda 11 que define papéis e poderes formais da Presidência, ela não é clara nos seus limites.

         Fala-se em Presidência Imperial, especialmente no pós-guerra com o comando da maior potência global.

         Há uma propensão a governar às margens do Congresso, perdoar-se a si próprio, mas o sistema criado ao longo do tempo garantiu e garante, pelo menos até agora, estas tentativas de o presidente se tornar um monarca, um déspota.

         Um caso emblemático começa a desintegrar este sistema de freios e contrapesos, erodindo a tolerância mútua, atropelando a reserva institucional. Desde inícios de 2016, com a morte de um membro da Suprema Corte, Barak Obama poderia indicar um novo ocupante do carto, mas o Partido Republicano barrou de todas as formas esse direito básico de convivência e tolerância.

         Repetimos, a direita mais radical do Partido de oposição, o Republicano faz de tudo para impedir que se analisasse o nome proposto pelo presidente em exercício, e a vaga na Suprema Corte só vai ser ocupado com uma nomeação de Trump, com alguém do “seu gosto imperial”, num logro claro à democracia.

         Onde a questão fica mais evidente é quando os autores nominam o oitavo capítulo: “Trump contra as grades de proteção”.

         Já tínhamos visto como “as grades de proteção” coibiram presidentes de estender suas ações além das normais não escritas.

         E Trump ataca a “mídia como inimiga do povo”, como fizeram outros em outros locais. E o presidente avança no seu comportamento violador de normas que um presidente deveria observar, causando desânimo, gerando ódios e choques.

         Fujimori, Chávez e Erdogan tinham imenso apoio popular quando lançaram ataques contra as instituições democráticas. Não é o mesmo com Trump; mas quanto mais alta a taxa de aprovação dele mais perigoso ele se torna.

         Trump mente, ofende e provoca. Quando as normas não funcionam, estes comportamentos se alargam, dando margem a comportamentos antes impensáveis na política americana.

         É o que está acontecendo no Brasil nos dias atuais, onde fica evidente com o tema das queimadas da Amazônia e os atritos no presidente com os países na cena global.

         Leitura importante para entender o mundo. E essencial para entender o nosso Brasil também.

 

ADELI SELL é escritor e vereador