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A novela – Thelma e dona Lurdes, banalidade do mal e compaixão.

Balzac escreveu 88 volumes de sua Comédia Humana. As pessoas o liam. Não tinha TV nem cinema.

O brasileiro lê muito pouco, mas vê novela.

A verossimilhança em Literatura, como na novela das 9, é a impressão da verdade que a ficção consegue provocar no leitor, graças à lógica interna da história.

Balzac conseguia fazer a ponte do leitor com a vida como ela era na sua época.

Mariana Dias, autora Amor de Mãe, a novela, alcançou este êxito?

Em parte.

Muitos pensarão que me refiro a dupla Penha/Leila. Não. Acho que elas tem uma lógica. E a cena delas “livres” no bar sertanejo do Centro Oeste é a fronteira que não poderia ser ultrapassada. Se fossem ao Paraguai também teria lógica, mas a autora não queria passar tanta maldade para a Penha. Jogou no limite.

Érica? Não. Sua personagem tem sentido, é uma águia sensível, esperta, soberana de seus desejos, se distingue na fauna. Tem disto.

Mas o que faz sentido analisar é um conjunto de maldades, violências e trambicagens e a compaixão de uns e outros.

Poder-se-ia dizer que tem tiros, sangues, tentativas de assassinatos demais. Exacerbação de elementos. Não, não é disto que se trata. A vida anda assim. Balzac colocaria estes coisas do seu jeito. Certamente que Nelson Rodrigues colocaria tudo com as suas tintas que não teria nem comparação.

A estrutura familiar de Dona Lurdes e o filho vendido, perdido, a adotada, tudo tem um sentido.

A psicopatia de Thelma tem falhas, em especial na falta de cenas ou de indicativos de suas tramas, assim algumas coisas parecem meio forçadas. Há muitas coisas realizadas num tempo real meio impossível. Descuido? Talvez.

Pode haver uma psicopata como a Thelma? Sim, pode. A História criou seres bem piores: Hitler, Papa Doc e aquele que o Bolsonaro venera.

Banalidade do Mal é uma criação de Hannah Arendt, o subtítulo de sua obra Eichamann em Jerusalém. Ou seja, a Banalidade do Mal se apresenta nos microcosmos da vida cotidiana, no caso de Telma, Álvaro da Nobrega (me veio à mente o miliciano morto há pouco Adriano da Nóbrega), Belizário, como no macrocosmo, nazismo, genocídio em Ruanda etc.

Belizário e os seus comparsas são iguais aos corruptos que vem destas corporações, com alguma variante de DNA, com uma mistura de milicianos e bandidos de aluguel para toda e qualquer tarefa.

Eles se acham acima do bem e do mal, são machistas, logo ele cai pela soberba, pelo domínio que acha ter sobre outros, em especial sobre as mulheres (Penha, a viúva daquele que ele matou, como Leila), tanto que é envenenado numa cena quase perfeita, sem se dar conta que estava se enredando e começando a pagar a conta ali.

Álvaro da Nóbrega existe. É a escumalha de um setor empresarial que faz exatamente isto e muito mais, numa país como o nosso. Não se surpreendam se a vida real apresentar alguém pior do que ele, no noticiário antes da próxima novela.

E a relação dele com a Verena? Existe isto. E Verena existe e é verdadeira. Como o parceiro Farula é real tanto que colocaram um MC conhecido de ator. É o malando ingênuo que cai de patinho diante do poder e da maldade de Álvaro da Nóbrega. Parecia um nobre guerreiro. A carcaça.

Lucas é o jovem que se encanta com o saber, o poder, o ter. Mas é para lá de ingênuo e na cena em que morre é a menos verossimilhante da trama. Parecia iluminado, mas a bala tirou sua luz para todo o sempre.

Thelma é a personagem talvez com mais lacunas na turma do Mal. É como diz seu nome “protetora corajosa”.

Tão protetora e tão corajosa que fez as maiores atrocidades

.A composição feita pela Adriana Esteves é digna de nota.

Eles, Álvaro, Belizário e Thelma são muito maus. Eles destilam ruindade e semeiam a Banalidade do Mal. Matar é preciso como ultrapassar um carro na pressa.

Como pode a dona Lurdes ir ao encontro de Thelma sua carrasca, ao final? Só porque não a matou? Aqui o dilema da Banalidade do Mal e da Compaixão.

Mas ela matou a mãe de Camila, sua nora, como sua mulher amiga Jane. Mandou matar a nora. Atirou em Lurdes, colocando-a em cárcere privado.

E dona Lurdes ainda convence seu filho Danilo/Domênico a ir ver a suposta mãe que rouba seu filho.

Esta compaixão sai de onde?

Danilo é o seu Juiz. Domênico é do dia do Senhor. Ele julgava que a Thelma era ‘uma senhora mãe”, depois julgou que ela era um monstro, nada deixa de ter um cunho de verdade. Maldade versus compaixão. Poderia ele julgá-la de forma diferente? Não creio. Ao final, ele juga que deve ter compaixão.

Porque por definição “compaixão” é “sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem.” No caso, infortúnio de Thelma.

Nos dias que correm não se vê compaixão. Morreram já mais de 350 mil pessoas em 14 meses de pandemia, e o presidente e seus asseclas não tem compaixão com os que ficarão sem os seus, com os órfãos, com os/as viúvos/as e tantos e tantos outros.

Onde está em nosso cotidiano a compaixão da maioria com as pessoas que são mortas por balas perdidas?

A compaixão é um sentimento, um elemento de nossas vidas, de nosso ser que parece não mais nos pertencer.

E aqui nesta novela, há compaixão.

Seria um sinal como foram mostrados sinais na turma da professora Camila por outro mundo possível?

Tem lugar para uma personagem contraditória como a Vitória? Ela traz isto no nome, não é?

A compaixão dela tem um sentido de ser, pois viu ali no infortúnio da outra o que poderia ser o seu, até porque ela pode ter desencadeado uma trama.

Entre as vítimas da Banalidade do Mal vamos encontrar o Davi, o amado, o que derrota Golias/empresa poluidora.

O empresário Raul é o tipo do combatente prudente, é uma espécie de Maria Luiza Trajano ou José Alencar. Existem. São poucos.

Betina jurou ser enfermeira e está ali para o que der e vier e vai pilotar o seu hospital social. São poucas as betinas da vida, mas temos sim betinas.

Temos o tema das adoções que parece bem tratadas, tema mais do que atual, como a imersão de Vitória contra a violência doméstica.

Temos os negros que nesta novela estiveram em muitas ações. Destaque para Camila e Vitória. Marina também.

Tocou no tema da homoafetividade, sem se esquecer dos vícios como as bebedeiras de Lídia e do seu Nuno.

Vimos uma juventude meio perdida no início da trama mas são engatados e acarinhados pela radicalidade e resistência da professora.

Sandro é contraditório e faz o que deve ser feito: repele os inimigos. E na cena da morte do Marconi lhe deu grandeza, apesar de ás vezes parecer que o personagem carecia de melhor caracterização. Uma escorregada ingênua ao acompanhar o Farula na ratoeira montada por Álvaro da Nóbrega.

O tratamento do tema da venda de pessoas foi tratado como parece que deve ser, complexo, imbricado, mas sempre algo criminoso.

O tema ambiental talvez tivesse merecido um pouco mais de construção. Houve momentos que pareceu forçado e ingênuo. Mas nada é perfeito, muito menos em se tratando deste tema. Neste tema, houve alguns exageros que parecem um pouco difíceis, os tempos não são tão otimistas e não tem tanto ativismo.

Há muito que se tirar da ficção, da Literatura das Novelas.

O tema da pandemia teve uma boa atenção, com alguns escorregões.

Vocês devem ter estranhado que tratei dos nomes dos personagens. Tem tudo a ver. Mas será que a autora Mariana Dias pensou em tudo isto. Acho que sim. Seria muita coincidência estes nomes não terem sido elaborados.

Seria Thiago um acaso? O menino negro deixado pela mãe negra e pobre, adotado por uma mãe negra, mas famosa e com grana? Ele suplantou sua condição desde a adoção e quando respeita a mãe biológica, pega o presente, e diz que a mãe é a outra, faz juz ao nome, pois Thiago é o que supera.

Tem muito mais, mas não vamos arrastar esta análise como novela. Afinal aqui não tem merchandising nem publicidade no intervalo.

 

 

Adeli Sell é escritor e consultor.